Paulo Duarte Silva
POR SEUS MAUS COSTUMES E CLAMORES O MUNDO FOI PERTURBADO”: SERMÕES SOBRE
A AMEAÇA BÁRBARA EM CARTAGO E EM ARLES (437-512)
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“POR SEUS MAUS COSTUMES E CLAMORES O MUNDO FOI PERTURBADO”:
SERMÕES SOBRE A AMEAÇA BÁRBARA EM CARTAGO E EM ARLES (437-512)
«POR SUS MALAS COSTUMBRES Y CLAMORES, EL MUNDO SE VIO
PERTURBADO»: SERMONES SOBRE LA AMENAZA BÁRBARA EN CARTAGO Y
ARLÉS (437-512)
“THE WORLD WAS HARASSED BY YOUR EVIL LIVES AND CLAMORS”:
SERMONS ON THE BARBARIAN THREAT IN CARTHAGE AND ARLES (437-512)
Paulo Duarte Silva
1
PPGHC-UFRJ
pauloduartexxi@hotmail.com
Resumo
Desde fins do culo IV e as primeiras décadas do século V pregadores latinos deram certa
atenção às incursões “bárbaras” no Ocidente imperial e pós-romano. De fato, em que pese sua
relevância para o debate entre cristãos e “pagãos” na primeira metade dos 400, o Saque de
Roma por Alarico não foi o único ao qual bispos dedicaram sermões. Este artigo aborda sermões
entregues em contextos de conquista e cerco das cidades sob cuidado dos bispos: nos
referimentos aos casos da conquista de Cartago pelos vândalos em 439 e de Arles após o cerco
malsucedido por forças franco-burgúndias entre 507 e 508. Estes eventos se relacionaram
respectivamente a sermões de Quodvultdeus e Cesário que, dentre outros aspectos, destacam-
se pelo tom gráfico dado à violência perpetrada pelos “bárbaros” e a possíveis desdobramentos
sociais.
Assim, partindo do entendimento de que, em meio à comoção causada pelos episódios, os
sermões buscavam reforçar a posição dos bispos como porta-vozes autorizados de suas cidades,
propomos um exame comparativo das similaridades e, sobretudo, das diferenças observadas
nestes casos.
Palavras-chave: Pregação – Sermões – Bárbaros – Cartago – Arles
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Professor Adjunto de História Medieval da UFRJ. Coordenador do Programa de Estudos Medievais (PEM-
UFRJ).
Paulo Duarte Silva
POR SEUS MAUS COSTUMES E CLAMORES O MUNDO FOI PERTURBADO”: SERMÕES SOBRE
A AMEAÇA BÁRBARA EM CARTAGO E EM ARLES (437-512)
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Resumen
Desde finales del siglo IV y las primeras décadas del siglo V, los predicadores latinos prestaron
cierta atención a las incursiones «bárbaras» en el Imperio occidental y posromano. De hecho, a
pesar de su relevancia para el debate entre cristianos y «paganos» en la primera mitad del siglo
V, el saqueo de Roma por Alarico no fue el único al que los obispos dedicaron sermones. Este
artículo aborda los sermones pronunciados en contextos de conquista y asedio de las ciudades
bajo el cuidado de los obispos: en las referencias a los casos de la conquista de Cartago por los
vándalos en 439 y de Arlés tras el asedio fallido por las fuerzas franco-burgundias entre 507 y
508. Estos acontecimientos se relacionaron respectivamente con los sermones de Quodvultdeus
y Cesario que, entre otros aspectos, destacan por el tono gráfico dado a la violencia perpetrada
por los «bárbaros» y las posibles repercusiones sociales.
Así, partiendo de la idea de que, en medio de la conmoción causada por los episodios, los
sermones buscaban reforzar la posición de los obispos como portavoces autorizados de sus
ciudades, proponemos un examen comparativo de las similitudes y, sobre todo, de las
diferencias observadas en estos casos.
Palabras clave: Predicación – Sermones – Bárbaros – Cartago – Arles
Abstract
Since the end of the fourth century and the first decades of the fifth century, Latin preachers
have paid some attention to the ‘barbarianincursions into the imperial and post-Roman West.
In fact, despite its relevance to the debate between Christians and ‘pagansin the first half of
the 400s, the Sack of Rome by Alaric was not the only one to which bishops delivered sermons.
This article addresses sermons delivered in contexts of conquest and siege of cities under the
care of bishops: in references to the cases of the conquest of Carthage by the Vandals in 439
and of Arles after the unsuccessful siege by Frankish-Burgundian forces between 507 and 508.
These events were related respectively to sermons by Quodvultdeus and Caesarius, which,
among other aspects, stand out for their graphic tone regarding the violence perpetrated by the
‘barbariansand the possible social consequences.
Thus, based on the understanding that, amid the commotion caused by these episodes, the
sermons sought to reinforce the position of bishops as authorized spokesmen for their cities, we
propose a comparative examination of the similarities, and mostly the differences observed in
these cases.
Keywords: Preaching – Sermons – Barbarians – Carthage – Arles
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1. Considerações iniciais
O século V EC é frequentemente reputado como ponto de virada na história romana, não
somente por grupos migrantes realizarem incursões e subsequentes assentamentos nas
províncias ocidentais, mas também pela crescente influência cristã e eclesiástica nos assuntos
públicos em geral. Dentre outros desdobramentos, daí resultariam diversos reinos no ocidente
pós-romano, sob maior ou menor tutela da Igreja.
Em que pese tal interpretação frequentemente ainda carregar uma conotação pessimista e com
ressonância no debate público (Ward Perkins, 2005; Coutinho, 2006), nas últimas décadas os
debates liderados por pesquisadores tardoantiquistas
2
contribuíram para matizar não somente a
pecha negativa atribuída aos primeiros séculos medievais (Wickham, 2019: 39-57), mas a
própria noção de “crise” atribuída ao referido século. De modo geral, esta passou a ser entendida
em termos multifacetados, com diferentes amplitudes e aspectos sincrônicos ou diacrônicos,
obrigando estudiosos(as) ainda a questionar que grupos ou instituições atuaram em sua
condução, contenção ou mesmo em sua ampliação (Silva, 2019: 15-34; Erdkamp, 2019: 422-
465; Watts, 2021).
Com base na pesquisa pós-doutoral recentemente concluída,
3
este artigo explora um aspecto
colocado em tela a partir do século IV: a saber, a presumida liderança cívica assumida pela
Igreja e, em especial, pelos bispos em tempos críticos e de resiliência. Aqui, propomos o
exame da resposta episcopal a uma ameaça específica: nomeadamente, as incursões
“bárbaras”.
4
Para isso, consideramos a relevância dos sermões perante situações de cerco, de
ataque iminente ou de seus desdobramentos imediatos.
A nosso ver, a pregação deve ser considerada em estreita correlação com outros meios
“pragmáticosde gestão deste tipo de crise pelos bispos do período (Rapp, 2005), como o
resgate de prisioneiros de guerra, deslocamentos populacionais, desabastecimento, abusos
sociais e afins (Allen, Neil, 2013; Neil, Allen, 2020).
5
Embora dramáticas – e também por isso
tais situações permitiriam que os bispos se empenhassem na definição dos contornos de sua
2
Silva (2009: 77-108) oferece uma avaliação geral deste campo de estudos, bem como uma proposta interpretativa
global (Morales, Silva, 2020: 125-150). Sobre possíveis restrições à perspectiva ardoantiquista, conferir Silva
(2013: 73-91).
3
Intitulado “Preaching in times of crisis: sermons and episcopal management in the West (5th-7th centuries)e
realizado na University of St Andrews entre setembro de 2024 e fevereiro de 2025, sob supervisão do Professor
Carlos Machado. Este artigo amplia ainda o escopo de investigação previamente realizada (Silva, 2022: 5-15).
4
Cientes dos debates relacionados aos termos “bárbarose “germânicose suas respectivas implicações (Silva,
2019: 15-34), aqui empregamos o primeiro termo sem, contudo, reforçar a perspectiva civilizatória associada as
fontes romanas e/ou cristãs do período. Igualmente, conforme Whelan (2014: 506, n. 6) e Fournier (2017: 687-
688, n. 2; 698-99) aos nos referirmos às diversas confissões cristãs do período, optamos pelo uso dos termos
“niceno” e “homoiano” respectivamente em detrimento de “católicoe “arianista”, que costumam ser empregados
na documentação analisada – e que apontam para um juízo apologético ou acusatório.
5
E que, segundo as autoras, pode ser verificado especialmente pelo exame das cartas trocadas com outros bispos,
membros da administração e da corte imperial, generais, dentre outros.
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condição de autoridade e de porta-vozes autorizados dos cristãos nos assuntos públicos.
6
“Inventadosou exagerados, tais episódios e as respostas oferecidas pelos bispos dialogaram,
de alguma forma, não somente com as escrituras,
7
mas com as expectativas sociais em relação
à sua liderança (especialmente das camadas mais altas, público-alvo das homilias) e suas
expressões literárias, artísticas, políticas e monumentais.
8
É inegável que as campanhas militares promovidas desde inícios do século V chamaram a
atenção dos pregadores latinos: dentre outros aspectos, os sermões de Máximo de Turim (m.
ca. 423), Pedro de Ravena (m. ca. 450) (Allen, 2018: 135-156) e Leão de Roma (440-461)
mostraram, ao menos parcialmente, a repercussão das expedições e seus desdobramentos na
península itálica (Salzman, 2013: 295-310; 2014: 182-201). Por sua vez, em uma série de
sermões prévios à redação da Cidade de Deus (ca. 413-426) Agostinho lidou de modo mais
imediato tanto com o afluxo de refugiados do Saque de Roma de 410 quanto com a comoção
social e o consequente debate intelectual inflamado por “pagãos norte-africanos, que
contestaram os rumos do Império sob o cristianismo (Brown, 2008: 357-390).
Contudo, nenhum destes apresentou os termos das escaramuças de modo tão gráfico quanto
Quodvultdeus e Cesário, respectivamente bispos de Cartago (431?-439) e de Arles (502-542).
Como visto a seguir, em que pese as crises terem reservado destinos muito diferentes às suas
carreiras, os sermões que lidaram com o cerco e conquista de Cartago pelos vândalos (439) e o
malsucedido cerco de Arles por francos e burgúndios (ca. 508-512) expuseram vívidas
descrições dos eventos e de outras implicações sociais impostas às cidades e seus arredores.
6
Embora a noção de discurso(s) tenha sido definitivamente incluída nos debates sobre a “cristianização do
Ocidentepela historiografia desde meados dos anos 1980 (Brown, 1988; Brown, 1995; Brown, 1999; Cameron,
1991; Markus, 1997; Rebillard, 2013: 1-14), pode-se dizer que os sermões e a pregação não ocupam um lugar
privilegiado nestas interpretações. Aqui, partimos do conceito de “porta-voz autorizado”, oriundo das reflexões de
Bourdieu sobre discursos em xeque desde os anos 1960 notadamente, proferidos por poetas, professores e
sacerdotes. Em suma, trata-se daquele(a) investido e imbuído de falar em nome de uma coletividade e/ou
instituição (Bourdieu, 1996: 85-96; Bourdieu, 1996: 97-106) neste caso, os bispos, quase sempre responsáveis
pela pregação e de quem se esperava ainda a assunção de diversas atribuições pastorais, disciplinares e litúrgicas
em nome dos interesses cristãos.
7
Seguimos aqui a proposta de Stroumsa (2008: 553-570) que, ao mencionar a ideia de “galáxia escriturística”, cita
as escrituras cristãs do período no rol de culturas mediterrâneas e do oeste asiático, contestando frontalmente uma
hierarquização com conotações triunfalistas e/ou apologéticas. Aqui, empregamos a Bíblia de Jerusalém (BJ,
Gorgulho, Storniolo, Anderson, 2006).
8
Inclusive porque, assim como em dias de festa, podiam mobilizar uma audiência mais ampla e diversa do que a
habitual. Assim, é preciso atentar aos problemas em dividir a documentação escrita em tipologias mais “retóricas
ou “inventivas”, como sermões e hagiografias (Wickham, 2016: 16), por um lado, e outras que são mais “factuais
ou, pelo menos, “críveis”, como histórias, crônicas e anais, por outro. De uma forma ou de outra, todas devem ser
lidas “como guias para o tipo de coisa que poderia acontecer pelo menos na visão de mundo de seus autores
(Wickham, 2019: 52). Portanto, os sermões, como outros tipos de documentação escrita, m propósitos
expressamente prescritivos, apresentando uma visão ideal da sociedade, baseada em comportamentos e práticas
que pareciam corretos – novamente, pelo menos aos olhos de seus autores (Sessa, 2019: 5). Leemans (2018: 3-7)
e Rebillard (2018: 87-102) oferecem importantes reflexões recentes sobre o potencial analítico de sermões e
homilias do período. A respeito de outras implicações interpretativas sobre o estudo da pregação do período,
conferir Silva (2014: 202-230).
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Neste sentido, é fundamental destacar que os trechos iniciais do principal sermão de Cesário
em tela (sc. 70) são basicamente similares aos do segundo sermão de Quodvultdeus sobre os
“tempos bárbaros(2TB),
9
o que permite inferir que o bispo de Arles teve acesso ao menos
parcial à prédica do cartaginês.
10
Assim, ao assumirmos a influência parcial do bispo de Cartago sobre o de Arles, propomos um
exame comparativo das similaridades e, sobretudo, das diferenças observadas em suas prédicas.
A nosso ver, tal análise permite explorar tanto os aspectos recorrentes quanto as nuances que
tensionavam suas atuações como porta-vozes autorizados perante sensíveis circunstâncias.
2. Episcopado, crises e sermões em Cartago e Arles (437-512): algumas observações
2.1. Cartago e Arles antes das incursões
Antes de procedermos à análise documental em comparação, consideramos pertinente
identificar alguns aspectos acerca da situação dos bispados e as consequências das incursões na
trajetória de Quodvultdeus e de Cesário. Sabidamente, Cartago passava por um ciclo de
prosperidade desde a segunda metade do século IV, e ocupava uma posição comercial
proeminente no Mediterrâneo Ocidental, como entreposto de azeite, cerâmica e vinho
destinados especialmente à Roma (cf. Moorhead, 2006: ix, n 2-3).
11
Era a sede da principal
província da África romana (Africa Proconsularis) à época, e situava-se à nordeste e
relativamente próxima de Lambaensis, capital da província de Numidia Militiana que abrigava
a Legio III, responsável pela segurança regional. Sua posição estratégica permitia o controle de
rotas marítimas e terrestres, e sua influência se estendia por uma ampla área conurbada.
12
As
9
Conferir anexo.
10
Neste sentido, Morin (1937: p. 282) e Mueller (1973, p. 230) apontaram a semelhança entre diversas sessões
do 2TB e sc. 70.1-2, e que seriam esmiuçadas por Braun (1976, p. 509-510). Este notou ainda as similaridades
entre trechos do sc. 178 e o sermão “contra judeus, arianos e pagãosde Quodvultdeus (Braun, 1976, p. 510-511),
ao quem nem Morin (1953b, p. 721-723) nem Mueller (1973, p. 234) atentaram.
11
Não por acaso, autores como Salzman (2021) e Dey (2021: 33-68) consideram que, em termos demográficos e
econômicos, o Saque de Roma em 455 foi muito mais decisivo para o destino da cidade do que o de 410: não
somente por ter durado muito mais dias (cerca de duas semanas, em contraste com aproximadamente três dias do
primeiro), mas, sobretudo, por assinalar o domínio vândalo sobre o norte africano, a Sicília e a Sardenha: destes
provinham recursos estratégicos ao abastecimento da cidade prejudicados desde o século anterior pela
diminuição de produtos egípcios e sírios aos poucos dirigidos à Constantinopla, então em expansão. Assim, a
redução de recursos disponíveis para o sustento da cidade afetou gradualmente sua capacidade de abastecimento
(já que paulatinamente restrita aos domínios da aristocracia local na própria península itálica) e, por consequência,
sua resiliência perante crises ambientais, militares e de abastecimento. Por sua vez, mesmo com a perda dos
mercados romanos, até o século VI EC Cartago parece ter conseguido reorientar ao menos parcialmente sua
produção a outras praças, como Marselha, e a outras províncias africanas (Leone, 2007: 127-166; Vopřada, 2020:
14-15).
12
Como se poderia supor, as estimativas populacionais variam bastante. Para o segundo quartel do século V,
Lepelley (1981: 48, n. 48) considerou cerca de cem mil pessoas na cidade e trezentas mil considerando os
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evidências arqueológicas e literárias dão conta de um expressivo centro cívico, dotado de um
porto destacado e de tradicionais edifícios públicos e/ou locais de entretenimento.
13
Não por
acaso, o poeta gálico Ausônio (Ordo. 2-3; 1919: 268-269) a reputou como uma das maiores
cidade do Império, atrás somente de Roma e como que ladeada por Constantinopla, ao passo
que cristãos como Agostinho (Conf. 3.1.1-3, 4.7.12, 5.8.14; 1995: 32-4, 54-6, 76-7), e Salviano
(De Gub. 7.16; 1930: 210-212) reconheceram sua relevância como centro filosófico, retórico e
literário.
De fato, mesmo antes da chegada dos vândalos
14
em fins da década de 420, Cartago era o
principal palco do efervescente cenário cultural e religioso africano. Além da presença de
relevantes comunidades judaicas e maniqueístas e do embate entre cristãos nicenos e donatistas,
ao menos até inícios do século V os cultos politeístas tradicionais ou, como acusavam os
cristãos, “pagãos” – tinham adesão considerável entre os membros da elite local.
15
Por sua vez, situada nas duas margens do rio Ródano e servindo como via fluvial à Gália interior
e, inversamente, ao Mediterrâneo, Arles ocuparia uma posição econômica e comercial mais
relevante ao menos entre séculos IV e fins do VI EC.
16
Em meio à redefinição das províncias e
de suas fronteiras promovidas no contexto da Tetrarquia, recebeu distinções administrativas que
lhe renderam não somente a alcunha inflada de “Pequena Roma da Gáliapelo mesmo Ausônio
(Ordo. 10; 1919: 276-277) mas que acirraram as disputas com outras importantes cidades do
sul da Gália como Marselha e Vienne – refletidas de alguma forma na própria cristianização
da região observada no período. De fato, no âmbito clerical, mesmo ao contar com o apoio
eventual da sede romana ou ao organizar uma rede de aliança monástica responsável por
presidir concílios e apontar bispos na região,
17
a cidade não parece ter sido capaz de equiparar
sua proeminência administrativa no campo religioso.
arredores. Em contraste com outras cidades do Mediterrâneo e/ou do Ocidente, Cartago foi afetada “tardiamente
pelo temor das incursões em andamento: ao que parece, foi amurada por volta de 425, em meio à crescente
pressão vândala (Vopřada, 2020: 17).
13
Assim, destaca-se uma sociabilidade expressa política e culturalmente em espaços como o Fórum, o Palácio e o
templo à Tríade Capitolina situados na colina Byrsa, bem como o teatro, o Odeon, circos, termas e templos
variados. Tal sociabilidade foi alvo de críticas de Agostinho e, apesar das dificuldades, se manteve durante o
período de domínio vândalo (ca. 439-534), sendo inclusive parcialmente reforçada durante o domínio bizantino
(534-698) (Leone, 2007: Op. Cit.).
14
Como dito, de confissão homoiana – e pejorativamente chamados de “arianistas” pelos rivais nicenos.
15
Agostinho dirigiu-se especialmente a esta audiência notória de Hipona e, sobretudo, Cartago em suas primeiras
prédicas em resposta à comoção geral com o Saque de 410. Neste conjunto, além do citado Sermão Sobre o Saque
de Roma (2012: 37-59), incluem-se os sermões 33A, 15A, 113A, 81, 296, 105 e 25 (1981: 237-250; 495-503; 393-
400; 2012: 63-162), entregues nestas e noutras sedes africanas entre 410 e 412 (De Bruyn, 1993, p. 405-421;
Fredouille, 1998, p. 439-448; Salzman, 2013: 295-310).
16
Após tempos de dificuldades econômicas e demográficas vinculadas a desdobramentos da presumida “Crise do
século III”. A respeito da crise, conferir a obra organizada por Silva e Antiqueira (2021) e, em específico, o capítulo
de Carrié (2021: 15-27). Sobre Arles, vale frisar que desde o período de Augusto seu centro cívico foi dotado de
edifícios como o Fórum, muralhas, teatro, anfiteatro e circo (Heijmans, Rouquette, Sintès, 2011: 31-37, 130).
17
Trata-se, aqui, da “facção lerinense” (Mathisen, 1989), assim conhecida por ter no mosteiro de Lérins o centro
de estabelecimento da rede de apoio aristocrático e episcopal, de particular relevância no segundo quartel do século
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A situação da cidade se tornou mais complexa no terceiro quartel do século, quando, após
incursões militares, os visigodos sob a liderança de Eurico se estabeleceram no sul da Gália e
fixaram ali sua residência (ca. 475). Além de diversos cercos e da própria capitulação de Arles,
da destruição das plantações e/ou dos arredores e de possíveis atritos entre a população e os
conquistadores,
18
os novos senhores extinguiram a Prefeitura do Pretório e, provavelmente, a
Casa de Cunhagem. Ademais, o assentamento visigodo veio a dividir as sedes signatárias de
Arles, separadas entre os domínios de Eurico e, por outro lado, de seus rivais burgúndios.
2.2. Os bispados de Quodvultdeus e de Cesário e os desdobramentos das incursões
Embora de datação incerta,
19
o bispado de Quodvultdeus coincidiu com a conquista de
sucessivas e cidades e províncias africanas pelos vândalos. Até meados dos anos 420 estes
estavam assentados na Hispania: ao dominarem técnicas navais, passaram a promover razias
dirigidas às ilhas Baleares e à Mauritania (425-428). Em seguida, tomando parte nas disputas
imperiais, empreenderam avassaladoras campanhas de conquista do ocidente ao centro da
África romana.
20
A princípio, os vândalos encontraram resistência mais organizada em cidades
maiores como Sirte e, sobretudo, Hipona: após um cerco de aproximadamente catorze meses,
21
a última foi conquistada entre maio e junho de 430, e tornada sua capital na região.
22
Finalmente, em fevereiro de 435 um acordo foi firmado entre o imperador Valentiniano III e
Geiserico, líder vândalo: ainda que favorável aos últimos, este manteve as províncias de Africa
Proconsularis e Africa Byzacena (e suas respectivas capitais, Cartago e Hadrumentum) sob
jugo romano. No entanto, em outubro de 439 Geiserico quebrou o acordo e conquistou Cartago
sem enfrentar resistência (Vopřada, 2020: 36-40).
V. Em que pese sua particular relação com a sede de Arles, diversos outros bispos do sul da Gália tiveram a
formação prévia na ilha-mosteiro, e sua atuação gerou atritos que levaram à intercessão de Leão, bispo de Roma
(440-461), em prol de seus concorrentes.
18
Embora graves, tais atritos foram de impacto pontual e de curta duração, e sua reverberação mais geral junto aos
altos estratos sociais pode ser exemplificada em episódios de exílio episcopais, casos Volusiano de Tours, seu
sucessor Vero e, finalmente, de Quintiano de Riez (Klingshirn, 2004: 93-94, 202-208).
19
Quodvultdeus ascendeu nos quadros clericais de Cartago durante os bispados de seus antecessores Aurelio (391-
430) e Capriolo (427/431-439), cujas datações também são problemáticas (Mandouze et al, 1982:104-127, 189-
190, 947-949). É possível que, como presbítero, tenha sido correspondente de Agostinho em uma série de cartas
(221-224; 1956: 114-119) entre 428 e 429, em que teria solicitado ao bispo de Hipona a redação de uma de suas
últimas obras (Das Heresias, a quem Agostinho lhe dedicou). Neste caso, pesar da diferença de idade,
Quodvultdeus teria não somente o conhecido pessoalmente e mesmo assistido algumas de suas pregações , e
participado do círculo literário de amizades de Agostinho, que, dentre outros, incluía Possídio, bispo de Calama e
seu notório hagiógrafo (Vopřada, 2020, p. 60). As principais divergências sobre a datação de seu bispado são
apresentadas por Vopřada (p. 62, n. 35) que, por sua vez, considera que seu bispado sucedeu o de Capriolo (ca.
431-437), tendo se iniciado provavelmente entre 432 e 434 (id, p. 63).
20
Vopřada (2020, p. 35-36, n. 148, 150) apresenta uma atualização parcial do debate sobre a datação e o
contingente que cruzou o corrente Estreito de Gibraltar.
21
Período que coincidiu com a morte de Agostinho.
22
Não sem antes ter seus muros derrubados (Vopřada, 2020: 36-7, n. 162).
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15
Os escritos atribuídos a Quodvultdeus, notadamente os dois sermões a respeito dos “tempos
bárbaros” em análise (1TB, 2TB),
23
expressaram uma imagem de desolação também observada
em outras denúncias relacionadas à conquista vândala
24
que destacaram, em maior ou menor
medida, um cenário de desolação abatendo as províncias, as elites e, em especial, religiosos e
eclesiásticos. Segundo estes relatos, em paralelo à destruição dos campos
25
e cidades, os
agressores teriam exilado aristocratas recalcitrantes e/ou confiscado suas propriedades rurais.
Quanto ao clero niceno, este sofreria com assassinatos, exílios, sequestros e estupros (no caso
das monjas), além do incêndio ou confisco de mosteiros, bens móveis e propriedades
eclesiásticas.
26
Seria inadequado minorar a violência da conquista dos vândalos, reduzindo-a a meros topoi
literários. Contudo, é prudente matizar a interpretação historiográfica que lhes atribui o papel
de “bad boys(Ward-Perkins, 2005: 52). Além da frequente maior atenção dos autores (cristãos
ou não) aos infortúnios dos altos estratos sociais que, nestas incursões, poderiam perderiam
propriedades e privilégios, o tom gradualmente mais crítico (e mesmo escatológico) das
denúncias do clero niceno também expressava a crescente insatisfação de setores da elite
alijados no novo arranjo de poder secular e religioso. Nas palavras de Fournier (2017: 718,
tradução nossa) “[a]o testemunharem medidas coercivas, experimentarem o exílio e verem sua
23
As objeções mais contundentes a respeito da autoria dos escritos atribuídos a Quodvultdeus em particular, as
de Simonetti (1986: 35-39, 412-424) – arrefeceram e, hoje, são consideradas minoritárias: isto se deve, sobretudo,
à argumentação de René Braun, responsável pela edição crítica parte da série Corpus Christianorum Serie Latina.
Contudo, ainda há espaço algum espaço para ceticismo (Whelan, 2021: 149-150). Sabe-se que parte do corpus é
ainda considerado espúrio: no entanto, poucos estudiosos contestam a autoria de 1TB e 2TB (ENO, 1989: 153,
160, n. 34-35; Vopřada, 2020: 67-77, 85-90).
24
Dentre outros, em relação ao contexto africano, destacam-se a carta 228 de Agostinho (1956: 141-151) fruto de
um tenso debate epistolar sobre a evasão ou permanência episcopal nas cidades travado com os bispos
Quodvultdeus – de sede anônima e Honorato de Thiaba entre 428 e 429), a Vita Augustini (c. 28, 1997: 73-76),
de autoria do citado Possídio (e que inclui no c. 30.5-51 trechos quase completos da citada carta de Agostinho;
1997: 77-91) e as cartas de Capriolo de Cartago ao concílio de Éfeso (ep. 1.1; 2007: 5-6, 19). Nos anos seguintes,
autores como Próspero da Aquitânia, Teodoreto de Ciro, Salviano de Marselha e Idácio expressariam, em maior
ou menor medidas, a desolação com os rumos africanos sob domínio vândalo. Em específico, Leão de Roma (ca.
446) atentaria à situação das monjas violentadas durante a conquista (ep. 12.8,11; 2004: 48-57). Em seu conjunto,
tais autores se situaram entre a ênfase na denúncia dos habituais “horrores da guerra” como roubos, estupros,
mortes e incêndios (Ward-Perkins, 2005: 13-31; Fournier, 2017: 692, n. 26) e a condenação da “perseguição
vândala aos católicos e do “martíriodos últimos sob domínio “arianista”, consolidada, em retrospectiva, na
crônica de Victor de Vita (Hist. Pers., 1.1-16; 2006: 3-9; Fournier, 2017: 687-718). Décadas depois, este debate
ainda estaria presente na Vita Fulgenti comumente atribuída a Ferrando de Cartago (m. 546/547; Moorhead, 2006:
3-4, n. 3).
25
Ainda que com uma conotação moralizante (vista também em Salviano, De. Gub. 7.14-17; 1930: 204-213)
Quodvultdeus lamentou especialmente a destruição dos produtivos campos africanos (2TB.5.4).
26
Ademais, indícios de que o clero homoiano associado aos novos soberanos estivesse sendo favorecido por
conversões estimuladas por recompensas materiais, sob severa repreensão de Quodvultdeus (TB2. 14.11; TB1.
8.4-14).
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facção perder terreno, esses escritores [nicenos] desenvolveram uma interpretação cada vez
mais polarizada da conquista vândala”.
27
O clero niceno de Cartago e seu bispo foram sensivelmente afetados pelo novo arranjo político
e eclesiástico. Sabe-se que a cidade teve seus bairros abastados afetados pela instalação de
Geiserico e de parte de seu entourage. Por sua vez, como porta-voz do grupo em oposição aos
vândalos àquela altura, entre outubro de 439 e a primavera ou verão do ano seguinte
Quodvultdeus foi enviado à Nápoles, acompanhado do clero menor local (Vopřada, 2020: 65-
66). No exílio (onde permaneceria até sua morte, ca. 450-454) produziria ainda o Liber
promissionum et praedictorum Dei (445-449), em que criticaria ainda mais os vândalos. Quanto
ao clero niceno cartaginês, este pode ter sido desprovido de basílicas e mesmo de bispos em
favor dos rivais homoianos.
28
Por sua vez, os primeiros anos do longo bispado de Cesário (502-542)
29
são, presumivelmente,
os mais conturbados. Isto não se deve somente à eclosão do confronto entre a coalização franco-
burgúndia e seus adversários visigodos no sul da Gália, que levaria ao cerco de Arles entre 507
e 508. Admite-se que o bispo mesmo antes enfrentara não somente alguma animosidade inicial
de parte do clero local,
30
mas, sobretudo, que as relações com o rei Alarico II fossem
atravessadas por relativa desconfiança.
31
Com a eclosão do conflito e a morte de Alarico II na derrota decisiva visigoda na batalha de
Vouillé (verão de 507) (Klingshirn, 2004: 107-108) burgúndios acompanhados de um
destacamento franco promoveram o cerco da cidade entre fins do mesmo ano e o outono de
27
Por sua vez, amparadas nas evidências arqueológicas, as interpretações de Leone (2007: Op Cit) e Von Rummel
(2010, p. 157-181) contestam a premissa de uma intencionalidade destrutiva e ideológica associada
especificamente aos vândalos.
28
Segundo Leone (2007: 148-150), em que as evidências arqueológicas não permitirem distinguir templos nicenos
de homoianos, os relatos literários (notadamente Vitor de Vita) afirmam que os últimos teriam encampado as
principais igrejas e basílicas, além de cemitérios e mosteiros. Ademais, a sede nicena de Cartago teria ficado vaga
entre 440 e 454 e entre 457 e 478. É possível ainda que tenham destruído a basilica Carthagena que, àquela
altura, talvez sequer fosse usada como templo.
29
O estudo histórico do bispado de Cesário foi decisivamente influenciado pelas investigações seminais de Délage
(1971: 13-216) e Klingshirn (2004) que, no entanto, foram, de certa forma, condescendentes com narrativa da Vita
Cesarii (VC., 1994: 9-65), hagiografia organizada (ca. 549) por cinco clérigos sob a liderança de Cipriano, bispo
de Toulon e maior aliado de Cesário. Em que pese sua relevância, pesquisas mais recentes m buscado
problematizar alguns aspectos de sua condição de monumento-documento da facção episcopal de Cesário (Silva,
Silva, 2023: 208-233).
30
Ressentido com a intervenção de Eônio, então bispo da cidade e seu aparentado, que apelou à corte visigoda
pela indicação como seu sucessor à frente de Arles, buscando consolidar uma efetiva dinastia episcopal algo
relativamente comum na Gália do século V em diante (Mathisen, 1989).
31
O que não impediu que Cesário auxiliasse na proposição do Breviarum Alaricii (ca. 505) e, sobretudo, presidisse
o concílio de Agde (506), que reuniu bispos sufragâneos das dioceses sujeitas ao jugo visigodo. Além disso, uma
passagem cuja autenticidade está em disputa da hagiografia (VC.I.20) indica que Alarico pode ter garantido
imunidades fiscais à igreja e recursos para a libertação de cativos (neste caso, como teria sido garantido por
Teodorico, rei dos ostrogodos, após 508 (VC.I.36-42). Dando-se crédito ao relato hagiográfico (sobretudo as duas
primeiras acusações de traição, cf. VC.I.21-26; 28-31) nota-se que as suspeitas de conluio do bispo com a
coalização rival cresceram em compasso com o acirramento das tensões entre francos, burgúndios e visigodos.
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508, quando foi suspenso por tropas ostrogodas a mando de Teodorico. De acordo com a
hagiografia, durante o sítio dois eventos críticos teriam ocorrido: a destruição do mosteiro
feminino, então em construção nos arredores da cidade (VC.I.28), e a denúncia de que Cesário
estaria novamente em conluio com as hostes sitiantes.
32
Os anos seguintes (ca. 508-512) ao
cerco trouxeram não apenas novos governantes – ostrogodos –, mas graves desafios ao bispado
de Cesário: em que pese a parte amurada da cidade não ter capitulado (VC.I.34), ele deveria
urgentemente se empenhar em reconstruir o mosteiro feminino e sua própria reputação junto à
população, ao clero e à corte de Ravena, em meio à devastação de seus arredores e dos campos,
à fome e à situação de desabrigados e, sobretudo, cativos de guerra (VC.I.32-33) (Klingshirn,
2004, p. 111-117, 204-205).
33
Foi precisamente neste contexto de cerco e dos anos imediatos à
liberação da cidade que Cesário pregou os sermões aqui estudados.
34
Uma vez apresentado o ambiente geral associado à pregação de Quodvultdeus em Cartago (439)
e de Cesário em Arles (507/508-512), destacamos os sermões elencados neste artigo:
Sermões
Datação
Observações gerais
Quodvultdeus
de Cartago
1TB; 2TB
439?
TB2.4,5,6 sc. 70.1,2
32
De acordo com a Vita, a mais grave das três acusações teria se iniciado após um clérigo compatriota ter se
entregado às forças sitiantes, o que levaria uma multidão, incluindo “heregese, sobretudo, “judeus”, a acusar
Cesário de tentar trair a cidade (estes hereges seriam provavelmente arianistas, cf. VC.II.45). De acordo com o
relato, Cesário foi retirado do palácio episcopal e colocado sob custódia no palácio visigodo sem sucesso, os
visigodos teriam tentado retirá-lo da cidade. A suposta descoberta e leitura pública (no fórum) de uma carta de um
soldado da guarnição dos judeus propondo um acordo para a entrega da cidade (desde que os judeus fossem
poupados) teria levado à condenação e punição do judeu, e à subsequente liberação de Cesário (VCI.28-31).
Klingshirn (2004: 108-110) apresenta possíveis motivações para a inclusão deste controverso episódio no relato
hagiográfico.
33
A extensão dos danos a Arles e ao sul da Gália em geral pode ser estimada a partir dos sucessivos apoios
financeiro, provisional e de remissão fiscal prometidos por Teodorico entre 508 e 510 (Variae, III.32; III.40; III.44;
2019: 145, 149-150, 152). Ele reinstalaria ainda a Prefeitura Pretoriana em 511, apontando Libério como
responsável (Klingshirn, 1985, p. 198, n. 108; 2004, p, 114-115).
34
Ao contrário de Quodvultdeus, Cesário soube “gerenciara crise e, de fato, tirar grande proveito dela: segundo
a hagiografia, por volta de 512, ao se dirigir à Itália para alegadamente se defender de nova acusação de traição,
teria conquistado o admirado apoio de Teodorico e de senadores na libertação de cativos (VC.I.36-38). Ademais,
a partir do contato com Símaco (498?-514) teria adquirido o apoio de sucessivos bispos romanos, revertendo um
ambiente de indiferença e eventual animosidade entre Arles e Roma desde o segundo quartel do século anterior.
De fato, até inícios da década de 530 as sucessivas trocas epistolares entre o bispo e a Sede Romana (6, 7a, 7b, 8a,
8b, 9, 10-19, cf. 19; 1994: 78-139), por regra, endossaram as requisições feitas por Cesário, além de o dotarem
com distinções simbólicas como a honraria do pallium, ou o intitulando como vigário papal nas Gálias. Cesário
retribuiu tais benesses ao presidir concílios regionais que, dentre outros, apoiaram Roma em termos doutrinais ou
litúrgicos – ainda que nem todos os signatários pudessem ter o mesmo entusiasmo (Klingshirn, 2004, p. 111-146;
Silva, 2018, p. 21-43).
Paulo Duarte Silva
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Cesário de Arles
sc. 6;* 70;* 71
(30.4,6*; 35.4*; 39.1*;
141.2; 146.2*)
507/508-512?
* Associados ao contexto pós-
cerco de Arles por Klingshirn35
Algumas observações devem ser feitas. De fato, trata-se de sermões cuja extensão é bastante
discrepante: 1TB e 2TB são consideravelmente maiores do que o conjunto dos sc. elencados.
Ademais, em que pese a primeira similaridade a atentar no exame comparativo dizer respeito à
descrição gráfica dos “horrores da guerra”, ela não é a única e, como dito a seguir, também deve
ser nuançada. Contudo, o cotejo dos sermões permitiu lançar luz sobre diferenças consideráveis
que, em maior ou menor medida, mostram a apropriação inventiva de Cesário frente ao 2TB
36
e, claro, às demandas de sua própria crise por gerir.
3. Pregação e crise em comparação: aproximações e distanciamentos
3.1. Aproximações: relatos de devastação e o papel dos pregadores
Como dito, o principal aspecto similar na prédica de ambos é a descrição cruenta das incursões
vândalas e franco-burgúndias respectivamente junto a Cartago e Arles (2TB.4-6; sc.70.2). De
fato, ambos apontaram muitos desdobramentos dos cercos e saques “bárbaros”: eram paisagens
de devastação, inclusive dos campos (sc.6.6; 70.1; cf. 1TB.2.1-11), repletas de morticínio,
ruínas, capturas e mortes (TB2.1.3, 2.8, 4.7; 14.3-6).
Que o mundo enfureça, que os amantes do mundo enfureçam, que a espada
apavore, que a fome ameace, que a peste devaste, que as doenças abundem,
que a morte consuma. Quem nos separará da caridade de deus? Tribulação, ou
angústia, ou fomes, ou perigo, ou espada? (2TB.12.2-3).
37
35
Além dos sc. indicados por Klingshirn (1985, p. 191, n. 62; 2004, p. 10, 113, 114, n. 19, 204), ampliamos o
escopo de análise ao incluirmos outros sc. possivelmente associados ao ambiente pós-cerco, por também exortarem
a doação de esmolas para o resgate de cativos ou, inversamente, condenarem a avareza e a ganância dos que se
aproveitavam daqueles em dificuldades decorrentes das incursões, como sc. 141.2 e, sobretudo, 71.
36
Indo além de supressões esperadas como as feitas no sc. 70.2, que não incluiu alusão de Quodvultdeus à África
e suas regiões (Délage, 1971: 107-108; 2TB.5.4): Vos alloquitur ueritas, o dilectores mundi: Vbi est, quod
amabatis? ubi est, quod pro magno tenebatis? ubi est, quod dimittere nolebatis ? ubi est Africa, quae totó mundo
fuit uelut hortus deliciarum ? ubi tot regiones ? ubi tantae splendidissimae ciuitates ?(1976: 476-477, grifo
nosso). [“A verdade se dirige a vocês, ó, amantes do mundo: onde está o que amavam? Onde está aquilo que mais
tinham em grande estima? Onde está aquilo que não queriam abandonar? Onde está a África, que para todo mundo
era como um jardim das delícias? Onde (estão) tantas províncias? Onde (estão) tantas cidades esplendíssimas?
(tradução nossa)].
37
“Saeuiat mundus, saeuiant dilectores mundi, terreat gladius, immineat fames, uastet pestilentia, abundent morbi,
consumat mors. Quis nos separabit a caritate dei? tribulatio, an angustia, an fames, an periculum, an gladius?
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19
Assim, caberia aos pregadores não somente instruir e exortar os “abatidos na alma
(2TB.1.6,10.1-2; cf. sc.70.3;71.3) mas, sobretudo, denunciar os responsáveis pelos infortúnios
(2TB.1.6-7). Neste sentido, repreendiam tanto detratores que prefeririam silenciar (1TB.2.1,20;
sc.70.1) quanto pregadores que falhassem em exortar (1TB.1.17; 2TB.14.3-6) e dizer a verdade
(2TB.4.11,5.1-2).
Diante da desolação e de possíveis questionamentos da audiência, Quodvultdeus se deteve
muito mais que Cesário nas possíveis justificativas para as adversidades. Para isso, recorreu a
boa parte repertório de argumentações na prédica de Agostinho sobre o Saque de Roma e sua
repercussão nas províncias africanas.
38
Com isso, ao considerar o mundo como ‘lagar’,
‘fornalha ou ‘fossa (1TB.2.10-11,3.8-9; 2TB.4.11), esperava que a aplicação da ‘medicina
divina(2TB.1.1, 6,1) permitisse a separação da ‘lamae do ‘unguento(2TB.4.8-9): em suma,
que explicasse o destino dos bons
39
e dos maus (1TB.3.1,2,10-11; sc.70.1).
Atentos a eventuais imbróglios, ambos condenavam não somente murmúrios e lamentações
(1TB.3.12,17; 2TB.3.1; sc.70.1) ou demonstrações de ingratidão e blasfêmia (2TB.2.3-
4,3.1,6.3,9,7.9-10,10.9; sc.70.1). Nostálgicos (1TB.3.21), frequentadores dos espetáculos
(1TB.1.11,3.19) e idólatras (1TB.4.11-13;2TB.3.2-5,4.2-5) seriam igualmente repreendidos,
fosse por adorarem deuses falsos e falidos (2TB.3.6-7) ou por consultar encantadores e
curandeiros (2TB.10.2-3; cf. sc.70.1).
No contexto do sítio, ambos ressaltaram a dramática situação feminina: reconhecendo que a
violência contra as mulheres era um dos mais sensíveis “horrores da guerra”, os pregadores
enfatizaram especificamente a condição de grávidas e mães lactantes, agravada por (ao menos
parte delas) pertencerem aos quadros aristocráticos. O ultraje era, assim, tanto maior quanto por
subverter as hierarquias sociais: “E especialmente esse poder bárbaro ímpio exigiu de tais
mulheres, de que aquela que se sabia ter sido senhora de muitos escravos, se lamentou
subitamente ter se tornado escrava barata dos bárbaros (2TB.5.11; sc.70.2).
40
Outrossim,
Quodvultdeus e Cesário sublinharam os abusos impostos às “virgens consagradas(2TB.6.4;
sc.70.2),
41
comumente identificadas com o monacato, e que parecem ter escandalizado
(1976: 484). Além da menção a Rm. 8:35 (BJ: 1980) nos dois questionamentos citados, noutros trechos da prédica
a devastação foi associada ao Apocalipse (Vopřada, 2020: 283,290): seus versículos foram citados de modo breve
(2TB.4.4,5.3; sc. 70.1, citando Ap. 22:11; BJ: 2167) e mesmo extensamente (2TB.9.7, citando Ap. 11:15 e Ap.
6:18-27; BJ: 2153, 2149). Contudo, Cesário pareceu preocupado em também em relacionar os lamentos a
tribulações menos arrebatadoras, apresentando-as de forma mais genérica (sc.70.1,71.1).
38
Conferir nota 15 acima.
39
Tendo como referência ainda os exemplos escriturísticos dos filhos e dos escravos obedientes (1 TB.1.3.13-14).
40
Conferir anexo. Presumida testemunha do Saque de 410, Pelágio foi um dos que também expressou tal
perplexidade em carta enviada à Demétria, ao lamentar que, em meio à confusão e ao terror generalizados, escravos
e aristocratas estivessem na mesma condição (c. 20, ca. 413).
41
Conferir anexo.
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20
especialmente os pregadores e autores cristãos do período como marca da “barbárieimposta
pelos combatentes.
42
A nosso ver, a preocupação em destacar a tragédia das mulheres, notadamente da aristocracia
e/ou dos quadros monásticos, tem motivações parcialmente distintas. Para Quodvultdeus, a
menção a grávidas e lactantes ressoava, provavelmente, os martírios de Perpétua e de Felicidade
(1TB.5.2-6,9), comemoradas não como exemplo feminino contraposto ao de Eva (1TB.5.7-
8) mas, sobretudo, em alusão aos novos “martírios” e “perseguições” supostamente impostos
pelos vândalos.
43
Por sua vez, Cesário pode ter frisado a condição das virgens pelo fato de o
cerco ter destruído o claustro em construção erigido “por suas próprias mãos e suor
(VC.I.28),
44
e, precisamente por isso, para exortar contribuições à sua reconstrução.
Para remediar a situação não somente das mulheres e das virgens, mas de outros que também
tiveram suas vidas afetadas pelas incursões, os pregadores atentaram aos cativos de guerra,
forasteiros e espoliados em geral (1TB.1.8.14; sc. 70;71.2). Deste modo, buscavam repreender
a quem teriam se recusado a dividir com os pobres e que, ao cabo, teria seus bens tomados pelos
conquistadores e que “(...) se recusou a compartilhar com o despossuído e com o pobre. Você
enchia os celeiros, fechava os armazéns, carregava os potes: quando não gastava com os pobres,
a quem reservava essas coisas senão aos bárbaros?(2TB.6.10-11).
45
Nesta situação, o anti-exemplo cristão que emergia destes sermões era Ananias (1TB.1.3.5;
sc.71.1-2), sinônimo de fraudador que teria perdido “igualmente o dinheiro e a salvação” (sc.71-
2). Apelando ao retorno da fraternidade apostólica diante das dificuldades, Cesário condenou
os que se afastariam desta solidariedade:
Eis a (pior) abundância: por todos os lados há peregrinos e cativos, estranhos
buscando esmolas e abrigo. (...). Reconheçam quem é tão desleal a ponto de
se recusar a dar mais do que pode de sua riqueza ou posses aos pobres, ou
quando inveja as posses alheias. (...). Além disso, se o Senhor nos pede para
vender para ter algo para dar aos pobres, em vez disso compramos, ampliando
do que talvez tenhamos adquirido injustamente do trabalho alheio. (sc. 71.2).
46
42
Em detrimento de um relativo silêncio quanto às violências cometidas contra outras mulheres e mesmo homens
ainda que se considere que a violência contra as monjas possa ter sido um elemento marcial relevante na opressão
ou supressão de comunidades sob ataque (Vihervalli, 2022, p. 3-22).
43
Fournier (2017: 705-506, n. 88-89) afirma, inclusive, que ambas foram tema de um sermão precedente do próprio
Quodvultdeus. Vopřada (2020: 90, n. 217) contesta a autoria do bispo cartaginês a esta prédica.
44
“Manuque propria et sudore construxerat” (1942: 307).
45
“communicare cum egeno et paupere noluisti. Horrea implebas, apotecas claudebas, gemellaria onerabas :
quando pauperibus exinde non erogabas, quibus ea nisi barbaris reseruabas ?” (1976: 478).
46
“Ecce abundant ubique, quod peius est, peregrini, captivi ; abundant et hospites, elemosynam tectumque
quaerentes. (...). Agnoscis quia qui nimium tenax est fidem perdit, dum facultatem vel pecuniam aut amplius quam
oportet negat indigentibus propriam, aut invidet alienam. (...) et cum vendere iubeat dominus, ut sit quid egenis
possit erogari. emimus potius et augemus ex eo quod fortasse iniuste de alieno labore adquisivimus” (1937: 288).
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21
Quodvultdeus foi além e criticou ferrenhamente a quem reclamava de perdas e que, ao mesmo
tempo, rapinava os bens alheios (2TB.7.9-10,8.1-5; cf. sc. 70.3, 71.1-2). Assim, ambos
insistiram na justa esmola, isto é, que não fosse fruto do trabalho ou do aproveitamento da
situação de outrem (2TB.8.11; sc. 70.3; 71.2-3; cf. 2TB.11.1-9), tampouco e, decisivamente,
dos mortos (2TB.8.7-14, 9.1-6). De modo a estimular uma parte da audiência abastada e, no
entanto, pouco afeita à liberalidade, Cesário chegou mesmo a afirmar que o jejum penitencial
poderia ser atenuado e mesmo suplantado por doações (sc.70.3; cf. sc.199).
Em um quadro de deslocamentos populacionais massivos, perdas de colheitas, rebanhos e
moradias, crises de abastecimento, especulação e de agravamento do banditismo campesino e
rural os pregadores exortavam a assistência material que não ampliasse mazelas sociais
saturadas. Necessariamente, como visto na denúncia da violência contra as mulheres
(aristocratas), a gestão das crises sociais desencadeadas pelas incursões envolvia diferentes
enfoques.
47
3.2. Distanciamentos: resgate de cativos e condenação confessional
Uma das principais diferenças entre os sermões estudados, de certa forma, desdobra-se da
defesa das esmolas como meio de mitigação social. Neste caso, observa-se uma ênfase por parte
de Cesário no uso de doações e recursos da igreja para o resgate de cativos ou prisioneiros de
guerra nos desdobramentos do cerco de Arles. Embora o resgate de cativos fizesse parte do
repertório de ações públicas episcopais desde o século V, Cesário se destacou por, ao menos,
três aspectos: pela recorrência com que vinculou a doação de esmolas a estes destinatários (sc.
30.4,6; 35.4; 39.1; 71.2; 141.2; 146.2), por exercer tais resgates em cidades fora de sua
jurisdição diocesana e, sobretudo, por defender o resgate inclusive de prisioneiros das forças
sitiantes (VC.I.32-33). Segundo Klingshirn (1985: 183-203; 2004: 113-117) o bispo visava,
dentre outros objetivos, ampliar o alcance social e geográfico de sua rede patronal, no intricado
cenário político/militar e diocesano do sul da Gália. Para isso, contou com o provável apoio de
reis rivais como Teodorico (VC.I.36-42) e Gundobado (VC.II.8-9).
48
No entanto, isto não o
impediu de apelar a figuras abastadas de sua audiência, apresentando o resgate de cativos como
uma das ações preferenciais de caridade:
Deixe um homem mau pegá-lo [o ouro]: que você acha que ele fará com ele?
Ouça: ele oprime inferiores, suborna juízes, derruba leis e perturba os assuntos
humanos. Por quê? Porque um homem mau tem o ouro. Deixe um homem
47
Como dito, por meio do exame de vastos corpora epistolares episcopais, a citada obra de Allen e Neil (2013:
37-53, 171-180) evidenciou a desigual atenção conferida pelos bispos aos dramas de membros da aristocracia
empobrecidos, capturados, em apuros com autoridades – ou, inversamente, do “povo”.
48
Além de Símaco, citado bispo de Roma e que, ao que parece, foi considerado como defensor dos pobres em sua
própria cidade (Klingshirn, 1985: 198).
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bom tê-lo [ouro]: o que ele fará com ele? Ouça: ele alimenta os pobres, veste
os nus, liberta os oprimidos, resgata os cativos (sc. 141.2).
49
Presume-se que tal prática tenha gerado animosidade, não somente por ser feita às custas de
parte do patrimônio da própria igreja arlesiana, mas, em especial, por poder se dirigir a grupos
outrora sitiantes, com os quais a população de Arles mantinha relações de provável
hostilidade.
50
Não por acaso, em dois trechos de em conjunto de sermões sobre o ‘amor pelos
inimigos’ (sc. 35-39, destinados inclusive ao clero da cidade) ele correlaciona o resgate ao
perdão dos adversários: “Mesmo que um pobre quisesse se desculpar por não poder alimentar
o faminto, vestir o nu ou libertar o cativo, ele não poderia de forma alguma dizer que não pode
perdoar seus inimigos ou adversários” (sc.39.1).
51
Ainda que concordemos com Klingshirn
(1985: 203) na compreensão desta defesa predical do resgate de cativos nos termos sociais e
pastorais do tempo de Cesário, é importante recordar que incluir inimigos dentre os
beneficiários da caridade foi algo a princípio inédito e arriscado. É possível que Quodvultdeus
se surpreendesse com esta atitude, dada as enérgicas e abertas críticas que fez aos
conquistadores vândalos, por sua ferocidade, mas, particularmente, por sua confissão dita
“arianista”.
52
O bispo de Cartago os nomeou “leões heréticos(2TB.13.3;14.7-8), cujas bocas ameaçavam
ovelhas desgarradas (2TB.13.6-11) sob os cuidados dos pastores/pregadores. Em sua invectiva,
Quodvultdeus os acusou de se considerarem perfeitos (2TB.10.8-10; cf. 1TB.1.3.3) e, como
dito, promoverem subornos e tramoias para sua conversão, culminantes em cerimônias de
rebatismo (2TB. 14.11;1TB. 8.4-14). No exame sucessivo de 1TB e 2TB é possível inclusive
perceber uma escalada na violência retórica, condizente com o alinhamento do bispo cartaginês
com o argumento de “guerra sagradaintroduzido pela epístola 228 de Agostinho (Fournier,
2017: 697). Assim, Quodvultdeus concluiria sua prédica 2TB.14 conclamando a morte dos
“leões” por intermédio de Davi, ele próprio rei e pastor:
53
E quem é que diz opróbio(s) contra o exército do deus vivo? O soberbo ariano.
Qual opróbio(s) diz contra o exército do deus vivo? Diz ser menor [do que é]
o filho do deus vivo. O que é grande, oh, soberbo ariano? Você se parece com
[aquele] Golias. (...). Estas virtudes de Deus e sabedoria de Deus, tornam a
pedra angular, colocada na funda da carne, apertada pela mão forte [de Davi],
49
“Ecce aurum. Tollat illud malus homo : putas quid inde facit ? Audi quid : inferiores opprimit, iudices corrumpit,
leges evertit, res humanas turbat. Quare sic ? Quia malus homo habet aurum. Habeat illud bonus homo : quid inde
faciet? Audi quid : pauperes pascit, nudos vestit, opressos liberat, captivos redimit(1953a: 581).
50
Sem contar a insatisfação de outras sedes com a ingerência de Arles por meio do resgate.
51
“Si se pauper quisque voluerit excusare, quod esurientem pascere, nudum vestire, captivum liberar non possit,
nullatenus in veritate poterit dicere, non posse suis inimicis vel adversariis indulgere(1937: 164-165, ver ainda
30.4,6).
52
Vopřada (2020: 282-290) oferece uma perspectiva geral das críticas de Quodvultdeus aos ‘arianistasou, como
preferimos, homoianos. A julgar por sua prédica catequética, o bispo de Cartago os teria considerado um perigo
maior que judeus e donatistas não somente por seus subornos e rebatismos, mas também por eventuais linhas
tênues doutrinais que os separariam dos nicenos.
53
Munido, por sua vez, das cinco pedras lisas do Pentateuco (2TB. 14.10-11).
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e [que] superou o Platão docente, e confundiu o Cícero eloquente, e derrubará
o ariano rebatizante. Amém. (2TB.14.6,7,11).
54
Os trechos 2TB.4-6 encontrados em grande parte no sc.70 não mencionavam diretamente os
“arianistas”. É possível que Cesário só tenha tido acesso a este trecho específico, que frisava a
ferocidade “bárbara na conquista de Cartago. Contudo, o contraste entre a denúncia de
Quodvultdeus aos “leõese o silêncio da pregação do bispo de Arles sobre questões de doutrina
pode ser considerado estratégico. Em primeiro lugar, porque as tropas envolvidas no cerco ou
na sua suspensão poderiam ser homoianas, nicenas ou ‘pagãs’.
55
Além disso, apesar de alguns
reveses para Cesário,
56
o domínio ostrogodo não parece ter rearranjado a situação política e
clerical de modo tão drástico quanto no caso cartaginês.
57
Ao contrário: embora homoiano,
Teodorico aparentemente se preocupou em construir boas relações com as lideranças de Arles.
58
O entendimento desta situação pode ter contribuído para o silenciamento de Cesário nos sc.
analisados, mas também para a discreta crítica ao ‘arianismo’ na sua prédica em termos gerais.
59
4. Considerações finais
Quando estudado, o tema da pregação latina sobre as incursões bárbaras continua ainda muito
vinculado ao estudo do Saque de 410 e das respostas de Agostinho de Hipona e, eventualmente,
de Leão de Roma ao episódio. Buscando ampliar as reflexões, este artigo colocou outros dois
eventos que tiveram repercussão ao menos regional: a saber, a conquista de Cartago (439) e o
cerco de Arles (507-508).
54
“Et quis est qui obprobrium dicit aduersus exercitum dei uiui? Minorem dicit esse filium dei uiui. Quid magnum,
Arriane superbe? Similitudinem geris illius Goliae. (...) Haec dei uirtus et dei sapientia, lapis angularis effectus, in
fundibalo carnis collocatus, manu forti expressus, et Platonem superauit docentem, et Ciceronem confudit
tonantem, et Arrianum prosternet rebaptizantem. Amen.” (1976: 486).
55
Homoianos: burgúndios, visigodos e ostrogodos; nicenos: franco; ‘pagãos’: grupos francos ainda não conversos
ao cristianismo niceno (Klingshirn, 1985: 190). Por outro lado, deve-se lembrar que, embora anteriormente
premido pelas disputas entre donatistas e nicenos e, da década de 420 em diante, pelo embate entre nicenos e
homoianos, o ambiente religioso de Cartago continuava diverso e efusivo.
56
Como a destruição do mosteiro e o presumido desconforto de parte do clero e dos cristãos em geral com o resgate
de cativos inimigos.
57
Que, de toda forma, embora oscilante, já tinha sido estabelecida décadas antes (desde 475) e que, se tomarmos
o concílio de Agde (506) como referência, indicavam um ambiente de crescente entendimento entre os bispos e
Alarico (Klingshirn, 2004: 97-104).
58
Vide as sucessivas ajudas que ofereceu para a recuperação de Arles e a própria reinstalação da Prefeitura do
Pretório em Arles após 510, ocupada pelo patrício Libério, um dos membros da elite local reputados no relato
hagiográfico como aliados de Cesário, assim como sua esposa Agrícia (VC.II.10-13).
59
A nosso ver, mais associada a propósitos instrutivos e/ou catequéticos (Silva, 2011: 101-124). Tal discrição a
respeito das confissões e da nomeação dos “bárbaros pode ser verificada inclusive no relato hagiográfico
(VC.I.30; II.10-12). Quanto aos monarcas, percebe-se que, salvo no contexto das duas primeiras acusações, não
na Vmenção direta às suas respectivas confissões (nem sequer a Quildeberto, rei franco niceno quando da
divulgação do relato (VCI.34; cf. VC.II.45).
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Para isso, analisamos os sermões de Quodvultdeus e de Cesário indo além do tratamento
anedótico que a historiografia costuma lhes atribui, como exageradamente moralistas e/ou
hiperbólicos quanto aos “horrores da guerrano período. Ao considerarmos que, como (auto-
)proclamados porta-vozes autorizados, os pregadores contavam, dentre outros meios, com os
próprios sermões na busca pela resolução das crises oriundas das incursões, investigamos
eventuais aproximações e distanciamentos em suas prédicas que, de toda forma, não podem
ser interpretados de forma reducionista e teleológica, à luz dos desfechos completamente
distintos reservados a Quodvultdeus e Cesário.
Neste caso, se podem ser aproximados na descrição da ferocidade e no empenho na resolução
das mazelas sociais (ainda que com um olhar certamente mais preocupado a grupos específicos,
como as virgens consagradas), nota-se que o bispo de Cartago foi ainda mais contundente na
condenação dos “bárbaros”, articulando sua presumida brutalidade a sensíveis questões
doutrinais. Por sua vez, atento aos desdobramentos do cerco de Arles e, apesar de tudo, ainda
no poder, Cesário pode ter buscado enquadrar sua crítica – inclusive para ampliar suas chances
de permanecer como bispo e, se possível, ampliar suas bases de apoio.
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ANEXO – Trechos similares 2TB e sc. 70
(Morin, 1937: 282-285; Braun, 1976: 476-478, 509-510)
(entre chaves, itens presentes somente em 2TB; entre colchetes as alterações de sc. 70)
2TB
Trecho latino
Tradução
4.7-8
Non enim est iniquus deus, qui infert iram:
uestris enim malis moribus atque
clamoribus exagitatus est mundus. Et ista
exagitatione malorum atque bonorum, sicut
cenum atque unguentum, pari quidem
exagitatum motu, illud exhalat, hoc suauiter
flagrat.
Pois não é injusto um Deus que inflige (a)
ira: por seus maus costumes e clamores o
mundo foi perturbado. E esta agitação dos
maus e dos bons, como a lama e o
unguento, também igualmente de tal modo
agitados, aquela (lama) seca, esta queima
suavemente
4.10-11
Hanc [hoc] infideles credere noluerunt, et
amore huius uitae obligati, nec istam tenere
potuerunt, et illam per infidelitatem
[N]esta (vida) os infiéis não quiseram
acreditar, presos pelo amor a esta vida
(terrena), mesmo assim não conseguiram
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30
amiserunt. Quid facitis, quid agitis {, o
lugendi?} Nonne urguetur mundus ?
Vrguemini etiam et uos, dilectores mundi,
ut exeatis, atque ad illud ueniatis, quod
videre non uultis, sed necesse est ut
uideatis.
mantê-la, e a perderam por infidelidade. O
que fazem, o que empreendem, ó, pessoas
dignas de lamento? O mundo não está
pressionado? Comprimam também e vocês,
amantes do mundo, de modo que saiam e
venham para aquilo que não desejam ver,
mas é preciso que vejam.
5.1-2
non insultans, sed gemens et dolens ponam
[haec dico] (...). [Ecce] Ponam ante oculos
uestros mala ipsa quae fiunt; et qui
[superbo et rebelli spiritu se emendare
noluerit, impletur in eo illud quod scriptum
est:] in sordibus est sordescat adhuc, iustus
autem iustiora faciat, et sanctus sanctiora.
Porei diante de seus olhos os maus que
aconteceram, e aquele que [cujo espírito
soberbo e rebelde não quer emendar, nesse
será completo o que está escrito] está na
imundice/nas sujeiras que se suje mais,
porém que o justo se faça mais justo, e o
santo, mais santo.
5.3
Non enim spes bonorum in isto est mundo
posita: Spes enim quae uidetur, ait
apostolus, non est spes; quia et ipsa spes
mundi, quae uidebatur [videtur], in
amaritudinem uersa est. Amaram enim
potionem mundus suis dilectoribus
propinauit.
Pois a esperança dos bons não está posta
neste mundo: pois a esperança que se vê,
diz o Apóstolo, não é esperança; porque
também esta própria esperança no mundo,
que era vista [se vê], foi vertida em
amargura. Pois o mundo deu aos seus
amantes uma poção amarga.
5.4
Vos alloquitur ueritas, o dilectores mundi:
Vbi est, quod amabatis? ubi est, quod pro
magno tenebatis? Ubi est, quod dimittere
nolebatis? {ubi est Africa, quae toto mundo
fuit uelut hortus deliciarum?} ubi tot
regiones? Ubi tantae splendidissimae
ciuitates ?
A verdade se dirige a vocês, ó, amantes do
mundo: onde está o que amavam? Onde
está aquilo que mais tinham em grande
estima? Onde está aquilo que não queriam
abandonar? {Onde está a África, que para
todo mundo era como um jardim das
delícias?} Onde (estão) tantas províncias?
Onde (estão) tantas cidades esplendíssimas?
5.5-16*
* tradução
seguido
somente
2TB
Nonne tanto haec acerbius castigata est,
quanto aliis prouinciis emendatis ista
corrigendo noluit suscipere disciplinam ?
Lugendo ista potius dicta sint, quam
insultando : neque enim alienus poterit esse
ab istis calamitatibus, quem intus
conpassionis huius pius tangit affectus.
Magno affectu ista deputarentur, si
tantummodo audirentur : at cum· oculos
nostros dira haec calamitas feriat,
mortuorumque hominum sepeliendis
cadaueribus nullus occurrat, omnes uicos
omnesque plateas atrox mors, totam
quodammodo foedauerit ciuitatem;
considerantes etiam illa mala, matres
familias captiuas abductas, praegnantes
abscisas, nutrices euulsis e manibus
paruulis atque in uia semiuiuis proiectis,
quae nec uiuos potuerunt filios retinere, nec
mortuos permissae sunt sepelire ...
Cruciatus in utroque magnus et dolor : hinc
dolet uiuum auibus canibusque proiectum
suum paruulum, hinc metuit offendere
dominum barbaricum; dolor et timor
tortores cordis assistunt. Inposita etiam
insolita humeris pondera : animam tantis
cruciatibus lassatam, graui pondere
fatigatur et corpus ; et maxime a talibus
Não é verdade que foi esta província tanto
mais duramente castigada porque não quis
aceitar a disciplina para se corrigir,
enquanto outras províncias foram
corrigidas? Estas coisas foram ditas mais
lamentando do que insultando: porque não
conseguirá ficar alheio perante tais
calamidades aquele que o pio afeto da
compaixão deles(as) toca intimamente.
Estas coisas seriam consideradas com
grande afeto, se ao menos fossem ouvidas:
mas quando esta calamidade terrível atinge
nossos olhos, e ninguém acorre aos
cadáveres das pessoas mortas que devem
ser sepultadas. Todos os becos e todas as
ruas e de algum modo a cidade inteira essa
morte atroz terá poluído. Estes males que
também devem ser considerados, mães de
família sequestradas e (,portanto,) cativas,
grávidas cortadas, enquanto as lactantes,
tendo seus pequenos arrancados das mãos e
lançados semivivos na rua, não puderam
nem reter seus filhos vivos, nem tiveram
permissão para enterrá-los mortos. Há um
grande tormento e dor numa e noutra: aqui
sofre sua criancinha lançada viva aos cães e
às aves; lá, ela teme ofender o senhor
bárbaro, a dor e o temor são aliados dos
Paulo Duarte Silva
POR SEUS MAUS COSTUMES E CLAMORES O MUNDO FOI PERTURBADO”: SERMÕES SOBRE
A AMEAÇA BÁRBARA EM CARTAGO E EM ARLES (437-512)
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feminis hoc impia barbarica potentia exegit,
ut ea, quae se sciebat multorum
mancipiorum fuisse dominam, barbarorum
se subito sine uno· pretio lugeret ancillam.
Impletum est illud, quod dictum est per
prophetam Dauid : Vendidisti populum
tuum sine pretio, et non fuit multitudo in
iubilationibus eorum. Dura ab eis seruitia
sine ulla misericordia humanitatis a
barbaris exiguntur. Strepitus clamoris huius
cotidie in auribus nostris ab eis qui
coniuges, parentes, illo impetu perdiderunt
exurgit. Dum talia conspicimus, atque talia
uidemus, numquid ferreae sunt carnes
hominum, etiamsi sensus ferreus in
aliquibus inuenitur ? Quis ista audiens
uidensque non doleat, atque in eis et qui
perpessi sunt se potius quam illos plangat ?
“Quis dabit capiti meo aquam, et oculis
meis fontem lacrimarum, et plorabo die ac
nocte uulneratos filios plebis meae(...)?
Deficiunt flendo oculi eorum, qui
considerant non solum mortes corporum,
uerum etiam animarum.
torturadores de coração. Sobre os ombros
também são colocadas coisas pesadas e
inusitadas: por um lado, a alma está
cansada por tantos tormentos; por outro, o
corpo está fatigado pelo grande peso (peso
pesado). E especialmente esse poder
bárbaro ímpio exigiu de tais mulheres, de
que aquela que se sabia ter sido senhora de
muitos escravos, se lamentou subitamente
ter se tornado escrava barata dos bárbaros.
Cumpriu-se aquilo que foi dito pelo profeta
Davi: Vocês venderam seu povo barato/por
um preço vil, e não foram em muito nos
júbilos deles. Duras servidões são exigidas
delas pelos bárbaros sem qualquer
misericórdia da humanidade. Vem aos
nossos ouvidos o barulho deste grito
daqueles que perderam cônjuges, parentes,
com aquele ataque. Enquanto tomamos
conhecimento e vemos tais coisas, será
mesmo que as carnes dos homens não são
feitas de ferro, embora se encontre em
alguns uma sensação férrea? Quem não
sofre ouvindo e vendo estas coisas, e não se
lamente mais por si do que por aqueles que
(as) suportaram? Aquele que me der água a
minha cabeça, e aos meus olhos uma fonte
de lágrimas, e então chorarei dia e noite os
filhos feridos do meu povo? Chorando,
ficam feridos os olhos daqueles que
consideraram não somente a morte dos
corpos, mas também das almas.
6.2-4
Multos enim consideramus [cognovimus] in
ista uastatione sine sacramento baptismi ex
ista uita fuisse ereptos, atque inter uasa irae
inexpiatas animas fuisse relictas. Quis
luctus idoneior, quis planctus certior
inueniri potest, quando sic ira exarsit
omnipotentis, ut repelleret tabernaculum
suum in quo habitauit in hominibus, et ille,
qui unico filio non pepercit, sed pro nobis
tradidit eum, nec pretium tanti sanguinis
attenderet; Quando intus in carde nostro,
templo [scilicet] quia dignatus est[,] suo{,}
ita omnia uiolata esse perspexit, ut etiam
ipsa sanctificata, in quibus fidelium
sacramenta celebrabantur, hostibus tradere
non dubitauerit ; nullae ecclesiae, nulli
clerico, nullae sacratae uirgini, nullae
parcere ciuitati ?
Pois consideramos [reconhecemos] que
muitos tenham sido arrancados desta vida
nesta devastação sem o sacramento do
batismo, e que (su)as almas tenham sido
deixadas inexpiadas entre os vasos da ira.
Que luto é mais idôneo, que choro mais
certo pode ser encontrado, irrompeu tanto a
ira do onipotente que ele arrancou seu
tabernáculo no qual habitava entre os
homens, e ele que não poupou seu único
filho, mas o entregou por nós, não se
importando com o preço de tamanho
sangue. Quando ele examinou dentro de
nosso coração, [certamente] seu templo
porque foi dignado desse modo, tudo estava
violado, de tal que as próprias coisas
santificadas, com as quais se celebravam os
sacramentos dos fiéis, não hesitou entregar
às hostes e em poupar nenhuma igreja,
nenhum clérigo, nenhuma virgem
consagrada, nenhuma cidade?
Paulo Duarte Silva
POR SEUS MAUS COSTUMES E CLAMORES O MUNDO FOI PERTURBADO”: SERMÕES SOBRE
A AMEAÇA BÁRBARA EM CARTAGO E EM ARLES (437-512)
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Paulo Duarte Silva
Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Programa de Pós-
graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Juntamente com
as professoras Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva e o Professor
Paulo Pachá, é Coordenador do Programa de Estudos Medievais. Além disso, é participante dos
seguintes Grupos de Pesquisa registrados no CNPq: "Dominium: Estudos sobre Sociedades
Senhoriais" (UFS); "REIA - Rede de Estudos Ibéricos e Íbero-Americanos" (UFG); "LEOM -
Laboratório de Estudos de Outros Medievos" (UFPE) e "Repertorium" (UFES).