Walter Pincerati Jr e Cauê Kruger
QUEBRAR A CIDADE TAMBÉM É UM GESTO PERFORMATIVO
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QUEBRAR A CIDADE TAMBÉM É UM GESTO PERFORMATIVO
ROMPER LA CIUDAD ES TAMBIÉN UN GESTO PERFORMATIVO
BREAKING THE CITY IS ALSO A PERFORMATIVE GESTURE
Walter PinceratiJr
1
PPGARTES-UNESPAR
k.pincerati@gmail.com
Cauê Kruger
2
PPGARTES-UNESPAR/PUC-PR
cauekruger@gmail.com
Resumo
Este artigo é uma experimentação no interior de um método cartográfico para encontrar
agenciamentos que permitam ligar proposições artísticas ao campo pedagógico. Apresento uma
investigação teórico-prática de uma proposta artístico-pedagógica a partir da minha trajetória
de vida-trabalho, como professor de teatro em uma ONG, no contraturno escolar, na cidade de
Curitiba. Reunindo relatos em uma escrita dramatúrgico-performativa, a pesquisa busca certa
inseparabilidade entre as áreas de conhecimento e de vida como método experimentado e não
aplicado. A experiência busca acompanhar processos de produção de subjetividades no plano
movente do coletivo de forças, para ativar a performatividade do campo pedagógico. Ao
relacionar pedagogia e performance, por meio de programas performativos, o que se pretende,
aqui, é tensionar as definições convencionais da prática pedagógica.
Palavras-chave: pedagogia, programa performativo, tática, performance, arte-educação.
Resumen
Este artículo es un experimento dentro de un método cartográfico para encontrar formas de
vincular propuestas artísticas al campo pedagógico. Presento una investigación teórico-práctica
de una propuesta artístico-pedagógica basada en mi trayectoria de vida-trabajo, como profesora
de teatro en una ONG, en el horario extraescolar, en la ciudad de Curitiba. Reuniendo historias
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Artes (UNESPAR). Brasil
2
Doutor em Sociologia e Antropologia pela UFRJ. Professor e Pesquisador do PPGARTES-UNESPAR. Brasil.
Walter Pincerati Jr e Cauê Kruger
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en un guion dramatúrgico-performativo, la investigación busca una cierta inseparabilidad entre
las áreas del conocimiento y de la vida como experimento más que como método aplicado. El
experimento busca acompañar procesos de producción de subjetividad en el plano móvil del
colectivo de fuerzas, para activar la performatividad del campo pedagógico. Al vincular
pedagogía y performance mediante programas performativos, se pretende poner en tensión las
definiciones convencionales de la práctica pedagógica.
Palabras clave: pedagogía, programa performativo, táctica, performance, educación artística.
Abstract
This article is an experiment within a cartographic method aimed at finding assemblages that
allow artistic propositions to be linked to the pedagogical field. I present a theoretical-practical
investigation of an artistic-pedagogical proposal based on my life-work trajectory as a theater
teacher at an NGO during after-school hours in the city of Curitiba. Combining personal
narratives through a dramaturgical-performative writing style, the research seeks a certain
inseparability between areas of knowledge and life, understood as an experiencedrather than
appliedmethod. The experience aims to follow the processes of subjectivity production
within the mobile plane of collective forces in order to activate performativity in the
pedagogical field. By relating pedagogy and performance through performative programs, this
study intends to challenge conventional definitions of pedagogical practice.
Keywords: pedagogy, performative program, tactic, performance, art education.
Walter Pincerati Jr e Cauê Kruger
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Introdução
Eu estou com os pés de frente para a pia, um ao lado do outro, escovando os dentes, pensando
se os dez minutos que tenho para andar até o ponto serão suficientes para pegar o ônibus do
meio-dia e quinze. Ao rés do chão, ante pé, eu chego a tempo na estação-tubo Imperial.
Parado, em pé, dentro do ônibus e apoiado na barra de ferro, meus pés estão ainda um ao
lado do outro. Pé ante pé, novamente, eu desço no terminal Campina do Siqueira e pego outro
ônibus para a estação-tubo Santa Quitéria. Agora, sentado, meus pés continuam um ao lado do
outro, na mesma posição que estavam diante da pia, na mesma posição do ônibus anterior,
parado, em pé. Eu desço no ponto, caminho cem metros até a rua Prof. Ulisses Vieira, viro à
direita e ando aproximadamente dezesseis quarteirões até o Instituto INCANTO. São vinte e
cinco minutos caminhando, aproximadamente. Pode parecer um gesto banal, reparar na
resignada posição dos pés ao ficar parado e ao caminhar. Algo me diz, no entanto, que o modo
repetitivo com que eles se movem durante o meu deslocamento para o trabalho é uma resposta
do meu corpo ao automatismo da cidade, que se revela na maneira com que eu me desloco
cotidianamente e nas configurações instantâneas da ordem da cidade. Meus pés não se dão conta
das inúmeras possibilidades com que podem descer essa rua. Por isso, decido: na próxima
semana, vou ficar com os pés parados para dentro e andar com os pés virados para fora. Por
isso, decido: na próxima semana, eu vou quebrar a cidade, eu vou quebrar o trajeto
3
.
Rua Jeremias Maciel Perreto - Depois da porta já fora de casa
Estamos aqui e este trabalho se faz em caminhada. Este trabalho é o enunciado dos passos que
instauram uma articulação conjuntiva e disjuntiva com os espaços. Uma enunciação pedestre
4
.
O caminhar aqui tratado é o conjunto de ações de contra conduta com a prática da performance
na rigidez da cidade, buscando criar formas-de-vida para uma composição política de todos os
devires-menores em um devir-comum.
“Caminhar é uma prática política. A forma como fazemos isto é a forma como fazemos
tudo”. (Taylor,2020). O que tem depois dessa rua? Como os obstáculos e negociações a serem
tomados durante um trajeto podem ressoar na minha prática pedagógica? O que pensar
desde/com os caminhos pelos quais passei e passo? O que eles podem oferecer para as relações
dicotômicas de quem ensina e quem aprende? O caminhar é um pensar/ser em movimento,
uma pedagogia e uma formação”. (Taylor,2020).
É certo que essa escrita não se faz sozinha, muitas são as pessoas e coisas que dividem o chão
desta cidade comigo. Nem todos enfrentam e vivem a cidade da mesma forma, essa escrita (e
toda escrita) também é atravessada pelos marcadores sociais da diferença. Considerar que cada
3
Trecho das anotações do caderno de aula.
4
Para Michel de Certeau (1994), a prática de um espaço estaria em relação ao lugar da mesma forma que a palavra
quando é pronunciada. O espaço é um lugar praticado. Para o autor, o espaço da cidade praticado se encarna
no caminhar de seus habitantes e a cidade estaria estruturada na linguagem. “O ato de caminhar; este ato é para
o sistema urbano aquilo que a enunciação (o speech act) é para a língua”. CERTEAU, Michel de. A Invenção do
Cotidiano, op. cit., p. 148.
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vida humana e não-humana está sobre o mesmo postulado de igualdade nesta cidade é recusar
também os efeitos que ela produz sobre tudo que a atravessa.
A cidade, na sua organização, produz e interfere na constituição social dos corpos, assim como
suas normas e suas operações moldam nossas relações e criam sistemas de representação dos
sujeitos e padronização dos desejos. O cotidiano, ordenado aos interesses do neoliberalismo,
fornece e organiza a circulação de informações, o acesso a bens de serviço, a criação de imagens
e modos de memorização e nos condiciona, a partir da operação dessas produções, a um corpo
dominado, o que o significa dócil. No entanto, tomar consciência dessas operações que
supõem um corpo passivo à disciplina não tem sido suficiente para se contrapor aos modelos
de ação característicos do sistema colonial-capitalístico. Como, então, articular um corpo, seus
movimentos e mobilidades, na cidade, também como campo de luta, e posicioná-los no interior
desses discursos como uma prática pedagógica? Como este cotidiano inventa “maneiras de
fazer” para outros espaços de vida e de afeto?
Embaixo de nós, o chão, em cima dele, a cidade. O conceito de cidade moderna, como modelo
político, está atrelado à criação de um sujeito universal que corresponda às operações
classificatórias da ordem social no discurso neoliberal. Segundo Michel de Certeau (1998),
essas operações classificatórias compõem a estrutura de um sistema de articulação social com
um conjunto de forças destinado a regular os espaços e sujeitos. Esse conjunto de forças tem o
poder de gerir e eliminar o que em uma sociedade é considerado detrito, desvio e anormalidade
para que seja transformado em categorias de representação. Para a filósofa Denise Ferreira da
Silva
5
(2022), acontece também outro efeito na produção de categorias na dinâmica da ordem
do capital global, elas produzem racialidade. A autora elucida a violência que existe nas
estratégias de representação, a ordem simbólica, jurídica e econômica, pois elas estão
circunscritas e fundadas entre semelhança e diferença.
Portanto, a linguagem do poder na cidade, que também passa pelo corpo, compartimentaliza a
vida e com isso o enunciado colonial-capitalístico introduz uma estratégia capaz de nos capturar,
fazendo a vida produzir regulação. Mas a cidade também se faz de seus movimentos
contraditórios e isso tem a ver quando um corpo, que passa pela cidade, toma a vida na ruptura
das regulações das redes de vigilância com ações que escapam à disciplina, fazendo do espaço
um espaço de vida inventiva. Proliferam nas cidades combinações de astúcias impossíveis de
gerir. Caminhar é uma delas.
Embaixo da cidade, o chão, em cima dela, nós. É a partir dos limites onde escapam a visibilidade
que Michel de Certeau diz viver “os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa
experiência, eles são caminhantes, pedestres, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um
texto urbano que escrevem sem poder -lo” (CERTEAU, 1998). Os cruzamentos que
constroem histórias múltiplas na cidade habitada são formados de trajetórias fragmentadas,
alteração de espaços e apresentam uma sequência de percursos variáveis e, tal qual a linguagem
ordinária, caminhar também implica a combinação de operações de estilos e uso nos espaços.
5
A filósofa, escritora e artista Denise Ferreira da Silva, em sua obra Homo Modernus para uma ideia global de
raça, faz uma cruzada filosófica a partir da filosofia pós-iluminista para analisar a força política da questão racial
na sociedade contemporânea. Revelando as formas de categorias pela distinção entre semelhança e diferença,
homem e outro, sujeito autodeterminante e outro produzem racialidade.
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O estilo seria uma forma de ser no mundo, uma constituição linguística do plano simbólico. O
uso remete a uma norma e define o fenômeno social por onde o sistema de comunicação se
manifesta. Quando direcionamos nossa atenção somente para essas duas formas de práticas de
espaço reduzindo suas capacidades apenas como presença utilitária do campo simbólico e como
elemento de código deixamos de detectar seu campo de força, deixamos de lado as cartografias
que marcam os encontros constituídos. Michel de Certeau (1998) em seu livro A Invenção do
Cotidiano faz uma comparação do caminhar com o ato de falar. Quando ele propõe essa
comparação, sugere que os processos de caminhar produzem um enunciado e dessa maneira
podem oferecer, para além das críticas de representação gráfica e da paisagem, uma
apropriação do sistema topográfico pelo pedestre. Para ele caminhar “está para o sistema
urbano como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos - (assim como
o locutor se apropria e assume a língua); é uma realização espacial do lugar” (CERTEAU,
1998: 177).
Assim como corpo e voz são indissociáveis, as cartografias da enunciação pedestre vão se
desenhando ao mesmo tempo em que os territórios vão tomando corpo, um não existe sem o
outro. Isso, se considerarmos o corpo em sua singularidade afetiva e seu potencial expressivo.
Ao atualizarmos o caminhar como produtor de práticas afetivas, produtor de enunciados,
deslocamos os limites das determinações que um objeto fixa para seu uso. O caminhante então
transforma o espaço em outra coisa, criando assim algo descontínuo, seja agindo na escolha
dos significantes da “língua” espacial, seja deslocando o uso que fazemos sobre os significantes.
“Não caminho sozinho”, diz o artista e performer mineiro Paulo Nazareth que se autodenomina
luso-ítalo-afro-krenak (FOLHA DE S. PAULO, 2013) e que ao escolher incluir o nome de sua
avó materna Nazareth Cassiano de Jesus como nome artístico busca trazer as memórias
individuais e coletivas de sua ancestralidade. “Minha avó passa a ser essa espécie de carranca,
né? Essa proteção” (VIANA, 2019). Paulo entende que, ao construir os caminhos de suas
ancestralidades de pessoa, o artista-obra passa a ser um mesmo corpo. O caminhar para o artista
também está atrelado aos seus antepassados indígenas e africanos assim como os trajetos
percorridos em sua infância quando sua mãe o matriculou a ele e seus irmãos em uma escola
no centro da cidade, distante de onde eles moravam, para que aprendessem a se deslocar entre
o centro e a periferia. Segundo Paulo, sua mãe dizia: “para não ficar bobo, tem que aprender
a andar, conhecer” (NAZARETH, 2019). O artista ganhou grande destaque com suas ações de
caminhada. Em 2011/2012, com seu trabalho Notícias de América, Paulo caminhou de Minas
Gerais até Nova Iorque, onde uma das várias propostas da ação era não lavar os pés até chegar
ao destino, no Rio Hudson, levando junto aos pés toda a poeira da América Latina. A partir dos
registros documentados de sua performance, esculturas sociais, desenhos, cadernos e retratos
em vídeo e filmes, Paulo nos apresenta uma América Latina plural e contraditória nas suas
fronteiras. O artista usa histórias pessoais e históricas para refletir sobre as condições sociais,
políticas e econômicas presentes nas Américas e para pensar noções de justiça social e
resistência pacífica.
O arquiteto e artista Francis Alÿs, nascido na Antuérpia, radicado na Cidade do México, através
de muitas caminhadas pela metrópole, estudou o cotidiano dentro e ao redor da capital, por
meio de ações performativas. Em sua performance o paradoxo da prática (às vezes fazer algo
leva a nada), em que empurra pelas ruas da Cidade do México um bloco de gelo durante nove
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horas até que ele se derreta completamente, o artista questiona a temporalidade acelerada da
cidade, seus padrões de produtividades e os deslocamentos funcionalistas modulados pela
cidade. Ele cria outras narrativas para o espaço público, evidenciando suas condições políticas
e sociais, a partir da experiência estética de suas ações. O que seria da cidade se também nos
propuséssemos a fazer algo que não leva a nada?
Ao caminhar, afirmamos, lançamos suspeitas, nos colocamos em risco e transgredimos as
trajetórias que “falam”. Esse modo de apropriação do espaço por um “eu”, aberto ao plano dos
afetos, tem a função de introduzir outra circunstância a esse “eu”: a de estabelecer uma
articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares. Quando nos lançamos a fazer outras coisas com
a mesma coisa, como um convite a uma maneira coletiva e radical de imaginação política, isso
é um gesto performativo.
Rua São Vicente de Paula Depois da porta a 3 quilômetros e trezentos metros fora de
casa
Ao longo dos anos, atuando como professor de teatro para crianças e adolescentes, venho me
perguntando o que é educar? E por que educar? Tenho encontrado na performance,
especificamente no programa performativo, uma maneira de seguir caminhando com estas
perguntas.  No entanto, não me proponho aqui a responder tais questões, tampouco a
eleger quais elementos das práticas artísticas servem ou não para garantir efetividade enquanto
proposição pedagógica. Interessa, nesse sentido, criar uma investigação teórico-prática de uma
proposta artístico-pedagógica para ativar a performatividade do campo pedagógico, buscando
certa inseparabilidade entre as áreas de conhecimento e de vida como método para ser
experimentado. O que pode uma pedagogia pensada e ativada em conjunto com a prática da
performance?
O campo pedagógico, especificamente o modelo de educação hegemônica, abrange práticas,
discursos e estruturas institucionais para operar determinados fluxos de poder e conhecimento
e, a imposição desses arranjos, também como condição simbólica, pode excluir um modo
inventivo de si e do mundo nas práticas educacionais. Uma ordem regulada em redes e objetos
de poder que funcionam como um modo de controle das subjetividades. Michel de Certeau
(1998) recorre à categoria de "trajetória" e usa uma distinção para diferenciar práticas que se
efetuam no interior das redes de poder dos espaços: estratégia e tática. Chama de estratégia os
tipos de operações de cálculo ou manipulação das relações de força que se tornam possíveis
quando um sujeito/instituição com poder e querer, como um exército, uma empresa, uma cidade
ou instituição científica, encontra um lugar de onde pode gerir e impor as relações com uma
exterioridade de alvos e ameaças: os inimigos, clientes e seus concorrentes, objetos e objetos
de pesquisa etc. As estratégias são ações que m a capacidade de articular um conjunto de
espaços físicos, elaborando assim lugares teóricos com sistemas e discursos totalizantes. A
tática é definida como uma ação calculada pela ausência do outro, que aproveita as ocasiões e
falhas que vão se abrindo na vigilância do poder proprietário para encontrar e prever saídas. É
um movimento no campo do outro para estocar benefícios, opera como uma astúcia, criando ali
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surpresas onde ninguém espera. Encontra nas circunstâncias uma possibilidade de fazer outra
coisa com a mesma coisa.
A questão, aqui, não se reduz a discutir ambientes positivos e agressivos, mas encontrar em
outras proposições pedagógicas um desvio para reconhecer e tensionar as operações da
produção de subjetividade capitalística no campo pedagógico. Articulando, assim, outras
relações sociais na confecção da força coletiva. Encontrando estilos de ação, táticas e maneiras
de fazer, para burlar as determinações e a lógica dominante da produção de conhecimento.
Venho então, a partir de relatos bricolados
6
e anotações, feitas em meu caderno depois de cada
aula em uma ONG na cidade de Curitiba, desenvolvendo uma escrita dramatúrgico-
performativa no interior de um método cartográfico
7
. Onde os relatos da minha atuação como
professor-artista-pesquisador em um espaço não formal, no contraturno escolar, e os percursos
casa-ONG, e ONG-casa, produzem o próprio campo de criação teórico-pedagógico-
performativa.
Av. Presidente Arthur da Silva Bernardes Depois da porta a cinco quilômetros fora de
casa
O relato não conta um modelo reproduzido da prática, não se satisfaz em dizer um movimento.
Ele o faz. Então, o que dizem os textos trazidos a partir da perspectiva do relato, o que podem
dizer os caminhos de um professor? A imagem discursiva, com todas as suas idas-e-vindas, faz
do relato uma contra-narrativa das classificações?
O pedagogo francês Fernand Deligny articula no relato de suas experiências institucionais, no
centro social, no asilo e na classe especial na França, as analogias e metáforas para pensar a
educação a partir do entendimento de “anormalidade” e do “desvio social” através da
formulação do entendimento de “infância inadaptada”. Seu livro, Os Vagabundos Eficazes
operários, artistas, revolucionários: educadores, é um relato literário, um diário de suas
relações com as pessoas, espaços e coisas desses lugares onde as narrativas de exclusão social
abrem caminhos para práticas de inclusão. Atento às mudanças do regime de poder no pós-
guerra, Deligny percebe nos sentidos do capitalismo a mudança de novas modalidades de
violência que se baseiam em resultados de “adaptação eficaz” para a mão de obra, ao invés de
pensar o cuidado dos indivíduos. Seus relatos, em tom de crônica, se distinguem por passagens
de diferentes registros: coloquial, poético, descritivo, vulgar e reflexivo. Provocador, ele busca
torcer a língua para fazer uma crítica à moral burguesa-católica que se intensificava no meio
educativo. Desestabilizando o convencional de um texto teórico para trazer à tona o
imponderável, para além das normas dos signos linguísticos, a sua ideia, no entanto, não se trata
6
Para Derrida (1971), o termo oriundo do francês bricolage, que significa um trabalho manual feito de improviso
e que aproveita diferentes materiais, foi ressignificado como termo para o campo da literatura como sinônimo de
colagem de texto em uma obra. Michel de Certeau (1994) utiliza a noção de bricolagem para representar um
conceito onde a união de vários elementos culturais resulta em algo novo.
7
A cartografia é um método de pesquisa sobre a produção de subjetividade onde Deleuze e Guattari propõem um
mapeamento das relações, dos processos e movimentos dos afetos e desejos para acompanhar a dimensão
processual dos fenômenos.
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de uma tentativa de naturalizar a inadaptação ou de sustentar uma passividade diante de
questões como violência, injustiça social e a pobreza, mas sim de revelar as relações intrínsecas
dessas pessoas “com problemas de ordem social”. É na noção de “circunstância” que ele
entende uma dimensão importante para criar “meios” ao “inadaptado” ele considera o
educador como um “criador de circunstâncias”. E não são circunstâncias para criar um meio
artificial, com intuito de desconectar a origem da realidade social do indivíduo, mas sim um
espaço para ele descobrir suas aptidões. Dessa forma, podemos pensar que ele produz meios
inventivos de si e do mundo para escapar às categorias como a do inadaptado e, principalmente,
dos discursos que visam salvá-lo desta condição. A partir disso, os “vagabundos”, educadores,
elaboram uma pedagogia da revolta, em que não se trata de amar os inadaptados, mas sim de
ensiná-los a sobreviver em um mundo hostil cuja hostilidade começa diante de suas origens
sociais. A forma de escrita de Deligny, o relato, introduz o movimento no modo de pensar a
educação. Um movimento que ocupa uma ação fundamental em suas formulações e que nos
atenta às diferenças nas relações, disponíveis ao que nos circunda. A última palavra do livro é
“esperança”.
Rua Professor Ulisses Vieira Depois da porta a quatro quilômetros e trezentos metros
fora de casa
A pesquisadora Leilah Landim tenta buscar na história e em definições objetivas “o que é uma
ONG” e apresenta as seguintes definições: “têm a ver com servir aos outros, não a si; mas não
há quaisquer outros, e sim existem a serviço de determinados movimentos sociais de camadas
da população oprimidas, ou exploradas, ou excluídas, dentro da perspectiva de transformação
social” (Landim, 1998: 24).
Aqui outras definições: “são micro-organismos do processo democrático, referências, lugares
de inovação e criação de novos processos. Ou espaços de criação da utopia democrática” (De
Souza, 1991: 142). As ONGs costumam ter uma relação de privilégio com campos sociais
específicos, como o religioso, o acadêmico e ainda mais forte com o político, se tornando um
lugar ambíguo entre a autonomia/dependência com esses campos, podendo determinar sua
permanência a partir dos discursos nos contornos dessas relações. Apesar de suas diferenças
institucionais, é possível observar que os espaços de contraturno e escolas têm incluído as
atividades artísticas a serviço de um poder-saber normatizador.
Em seu texto, “Escola é Lugar para as Artes?”, Carminda Mendes André aborda as definições
do autor Teixeira Coelho, em que diz: “podemos diferenciar cultura e arte pelos modos como
cada área aborda o mundo” (Coelho apud Mendes, 2008: 91) e que “a cultura é a
convergência de tudo o que está disperso, é desejo de congregar, sua função é afirmativa para
o coletivo para o consenso, para a unificação” e a arte pensa pela lógica da transgressão,
ela é risco, dissolve, abala” (idem). Após abordar as definições de Teixeira Coelho, Carminda
lança, nessa perspectiva, a seguinte constatação: “Quando a arte é capturada pelas instituições,
convertendo-se em bem cultural, ela acaba servindo de símbolo de convergência e de
identificação com a realidade que aí está. Ela afirma a realidade, representando-a”. (Mendes,
2008: 91).
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De fato, as instituições, enquanto organizações, e a institucionalização da arte, enquanto
processo, quando tomam valores por si com sua maneira de produzir bens e com sua maneira
de produzir relações sociais, se tornam engrenagens fundamentais do poder. E eu não quero seu
começo, nem seu fim. Eu estou no meio. O que acontece quando se coloca no meio e não dentro?
Eu, professor-artista- pesquisador, falo desde a ONG, mas não estou circunscrito nesse
ambiente. Falar disso me parece um falso problema, uma vez que o trabalho do artista é
desinstitucionalizar, de algum modo, os espaços.
A minha proposição não é da ordem macro-política. Trata-se de uma proposição que se na
dramaturgia do encontro, que é micro-política. Sabemos que as relações de poder também
atuam sobre as forças e ações no campo micro-político. A instrumentalização também tem
objetivos micro-políticos. Segundo Sueli Rolnik, o primeiro objetivo da instrumentalização é
“neutralizar a força transfiguradora das práticas artísticas, reduzindo-as ao mero exercício
da criatividade, dissociada de sua função ética de dar corpo ao que a vida anuncia” (Rolnik,
2019: 94). A minha proposição pedagógica que acontece na instituição sem se institucionalizar
é uma pedagogia radical. Uma pedagogia performativa, para anunciar vida e arte, sem
separabilidade. Uma pedagogia fora da visão dicotômica coletivo/individuo, uma prática onde
esses dois planos não se opõem, mas criam relações entre si e constroem relações de saberes
múltiplos.
“O encontro é uma ferida”, dizem João Fiadeiro e Fernanda Eugénio, em uma conferência-
performance de mesmo nome (Fiadeiro, João e Eugénio, Fernanda, 2012: 01). Um encontro só
é mesmo um encontro quando é percebido na sua aparição acidental, com sua potência que
alarga o possível e o pensável, revelando outros mundos e outros modos de se viver juntos a
ferida. Um encontro, então, só está aberto a suas linhas de força quando está disposto a ofertar,
aceitar e retribuir. O tempo está marcado e constituído pelas distinções entre semelhança e
diferença e visa isolar o objeto de suas articulações históricas. A relação sujeito/objeto cria
contornos para as conexões com o mundo e investe sua capacidade de produção de sentido dos
encontros apenas para legislar diagnósticos de controle e classificação. Supondo que primeiro
seja preciso saber para depois agir. Segundo João Fiadeiro e Fernanda Eugenio, “raramente
paramos para reparar no acidente, são inúmeros os acidentes que poderiam ter se tornado
encontro” (Fiadeiro, João e Eugénio, Fernanda, 2012: 03). Desse modo, os encontros não
alcançam seu potencial porque são prontamente decifrados e incorporados ao que já sabemos e
às respostas que temos. Não nos abalamos a ponto de notarmos o acidente como uma
inquietação, como uma possibilidade de reformular perguntas, como causa para refundar modos
de operar. Assim, tornamos o acidente uma manobra calculada da gica dominante, destituindo
dele o poder de afetar e ser afetado. Um acidente deve ser experimentado na força de uma
catástrofe, colocando em jogo o quanto é desproporcional na sua diferença, na sua distância em
relação às nossas expectativas e dos nossos instrumentos de decifração e interpretação. Nos
colocamos sem a possibilidade de ignorar ou controlar o impacto radical do encontro. No
entanto, este acidente-catástrofe pode não ser vivido como encontro também, que a cisão
entre sujeito e objeto ainda conserva sua capacidade de produção de sentido em diagnósticos,
apenas inverte a lógica. Pois, sujeito e objeto são configurações históricas e não categorias
transcendentais. Sem o controle que imaginávamos e julgávamos nos pertencer por direito,
ficamos estáticos com a força e poder do acidente. Se instala então uma crise, e colocamos tudo
em dúvida e buscamos os responsáveis, que nem o “saber” pode ser aplicado e nem o que
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“achamos”. que o que está em aberto agora é o “tanto faz” ou “tudo pode” do descontrole.
Por isso, o experimental de um dispositivo pode colocar à prova as hipóteses de prática do
sujeito e objeto, que para o contexto da ciência moderna, a sua distinção, existe para garantir
que a produção do saber possa ser validada de maneira coletiva, ou seja, pela comunidade
científica. As produções de conhecimento do padrão normativo colonial-capitalístico são
capazes de desaparecer com produções de conhecimento que partem de um processo inventivo.
O caráter inventivo nos coloca em movimento de transformação, não somente para fazer
enunciados, mas para criar novos problemas, demandando práticas originais de indagação.
Nesse contexto, o método da cartografia surge com o desafio de desenvolver o
acompanhamento de práticas de processos inventivos e de produção de subjetividades para
criação de elos; encontro-ferida, acidente-catástrofe, pedagogia-performativa.
Insistir nos encontros que têm a pretensão de saber antecipadamente o nome de cada coisa, seu
enquadramento, a regularidade, nenhuma errância ou susto, sem se arriscar ou mediante a
previsões do que vai ser nos sujeita a não formar elos. Mais que o domínio dessas produções, o
que se deve esperar dos encontros é um conhecer do mundo através das composições. Então,
se não é possível seguir em uma existência acomodada pela hegemonia das elites
capitalísticas, como fazer do encontro um acidente-catástrofe, que pertença ao conjunto de
componentes de conhecer o mundo como uma sensibilidade? Como não fazer previsões na
prática pedagógica?
É preciso tomar o mundo como uma invenção, sugiro. Detectar através dos signos e forças
circulantes do encontro o que se tem, fazendo com o que se tem. Produzir com o que surge do
encontro como acontecimento. Contudo, para experimentar esses cortesferidas, nas
engrenagens fundamentais do poder, é preciso declinar às respostas, declinar à insistência em
definir o que são as coisas, seus significados, suas representações e o que elas querem nos dizer.
Isso acontece quando renunciamos ao que envolve a proteção do sujeito e do objeto, quando
renunciamos o homem e o outro, o sujeito autodeterminante e o outro afetável. Desfazendo esse
tempo, a matéria da vida surge como uma questão aberta. Resistir a ferida aberta nos aponta
para a beleza que um acidente-catástrofe nos traz de um acontecimento que dura enquanto
não é.
Rua Professor Ulisses Vieira Depois da porta a quatro quilômetros e trezentos metros
fora de casa
Desenvolver um método cartográfico para pesquisa de campo no estudo da subjetividade não
tem o objetivo de definir um composto de regras abstratas para ser executada. Não tenta dizer
um caminho linear para encontrar um fim. A experiência do cartógrafo, no entanto, não impede
que se estabeleçam algumas pistas para investigação de um processo de trabalho. A cartografia
é um método elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) que busca acompanhar
processos, e não a representação de um objeto. A intervenção é um caminho e exige que o
cartógrafo faça uma imersão no plano da experiência. Com isso, conhecer e fazer se tornam
inseparáveis. Sendo assim, acompanhar um processo de constituição de subjetividade é
conhecer a realidade. Entra na composição de cartografias, elementos processuais provenientes
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da atenção do território, ativando assim uma virtualidade para perceber e potencializar algo que
estava matérias fluidas, tendências, linhas em movimento. Fazendo do conhecimento um
trabalho do método cartográfico, escavando espaços e compondo com restos arqueológicos. É
através do cartógrafo que se a invenção, mas não por ele, pois não existe um agente de
invenção. E isso acontece não porque o momento presente traz uma história anterior, mas
porque o território também possui uma processualidade. Segundo Suely Rolnik, o cartógrafo é
definido por um tipo de sensibilidade: “entender, para o cartógrafo, não tem nada a ver com
explicar e muito menos com revelar. Para ele, não há nada em cima céus da transcendência -,
nem embaixo brumas da essência. O que em cima, embaixo e por todos os lados são
intensidades, buscando expressão” (Rolnik, 2007: 66).
Av. Presidente Arthur da Silva Bernardes Depois da porta a cinco quilômetros fora de
casa
No cotidiano, a performance e a estética mudam conforme o lugar, de comunidade para
comunidade, correspondendo a um contexto de especificidade cultural e histórica, tanto na
aparição quanto em sua recepção. Segundo a professora de estudos da performance e fundadora
do Instituto Hemisférico de Performance e Política, Diana Taylor, “Dizer que algo é uma
performance significa fazer uma afirmação ontológica, embora localizada. O que uma
sociedade considera uma performance poderia ser considerado um não evento em outra.”
(Taylor, 2013). A autora sugere também que a performance pode ser entendida como “uma
lente metodológica” capaz de permitir que pesquisadores possam analisar eventos como uma
performance. Como, por exemplo, gêneros, identidades sexuais, etnicidade, resistências e
obediências sociais que são desempenhados e performados diariamente no contexto social.
Compreender então essas ações no cotidiano como performance sugere que a performance, em
conjunto com outras práticas culturais associadas, oferta um modo de conhecer. Ela funcionaria
também, então, como uma epistemologia.
Os variados usos da palavra performance e as discussões de alguns teóricos do campo das artes
em tentar localizar onde, quando e quais as proximidades ela tem em sua genealogia com as
artes da cena ou as artes visuais não faz sentido para este trabalho. O investimento que faço nos
estudos da performance vem mais daquilo que ela nos permite fazer do que daquilo que ela é.
Ao pensar a performance enquanto campo de conhecimento e produção pedagógica para
educação e as artes, busco mais as instâncias radicais do performativo do que as discussões da
dicotomia teatro/performance. Entendo que as discussões que envolvem performances e
espetáculo vêm de suas características de apresentações e, se ao escolher a palavra performance
eu me coloco em disputa ela é feita em direção à desprogramação e desestabilização do campo
pedagógico pela prática performativa. Faço uma aposta na performance enquanto tática para
pensar as práticas pedagógicas como uma ação que: “funcionam como atos de transferências
vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social” (Taylor,
2013). E por que a performance? Porque me interessa essa “lente metodológica” para “ver” e
“construir” o mundo. Isso significa entender os fenômenos enquanto ações reiteradas: gênero,
raça, classe, sexualidade: ações que se repetem e formam desvios de existir no mundo.
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O que oferta a performance é uma instância entre arte e vida, ela pode ofertar ações de
inseparabilidade entre elas, pois o gesto, a narração, o rito e as várias formas de utilização do
corpo precedem a efetuação histórica e seus agentes de poder. Ao performar tentamos detonar
simbolicamente novas alternativas para os panoramas do corpo como matéria de vida e
significantes. A performance está, então, com a inscrição do corpo no texto da ordem como
modalidade contestadora para abrir caminhos e agenciar corpos e afetos.
O conceito de performatividade surge a partir dos trabalhos de estudos literários, análise do
discurso e tese dos enunciados de fala do filósofo da linguagem britânico JL Austin que a partir
da análise e capacidade das palavras em determinados discursos denomina o performativo como
“os enunciados que têm poder de produzir uma nova situação ou de acionar um conjunto de
efeitos” (Austin, 1990). O autor compreende que existem sentenças “que expressam ordens,
desejos ou concessões e que, portanto, não apenas descrevem circunstâncias, mas criam
condições para ações.” (Austin, 1990). Assim, o autor conclui: “Batizar um navio é dizer (nas
circunstâncias apropriadas) as palavras ‘Batizo etc.’. Quando digo diante do juiz ou no altar etc.
‘Aceito’, não estou relatando um casamento, estou me casando”. (Austin, 1990).
Rua São Vicente de Paula Depois da porta a 3 quilômetros e trezentos metros fora de
casa
Programa performativo, conceito cunhado por Eleonora Fabião (2013), artista e teórica da
performance, é um procedimento composicional, que enuncia uma performance, possibilitando
tal experiência. O programa é “um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente
articuladas e conceitualmente polidas a ser realizada pelo artista, pelo público ou por ambos
sem ensaio prévio. Ou seja, a temporalidade do programa é muito diferente daquela do
espetáculo, do ensaio, da improvisação, da coreografia” (Fabião, 2013: 04). A autora nomeia o
procedimento como “programa” inspirado na leitura de 28 de novembro de 1947 como criar
para si um Corpo sem Órgãos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Neste texto, os autores
afirmam que o programa é o “motor de experimentação”. A partir disso, Fabião escreve:
Programa é motor de experimentação porque a prática do programa cria corpo e relações
entre corpos; deflagra negociações de pertencimento; ativa circulações afetivas impensáveis
antes da formulação e execução do programa. Programa é motor de experimentação
psicofísica e política (2013: 4). Nesse sentido, ações programadas em performance, se
relacionam com o mundo encontrando caminhos alternativos na oposição arte e vida.
Sendo assim, caminhar com os pés virados para fora não é apenas mudar a posição física na
ação de caminhar. É articular o programa/enunciado, criando, assim, dissonância e dissenso no
trajeto.
Através da realização do programa, o performer suspende o que de automatismo, hábito,
mecânica e passividade no ato de “pertencer” pertencer ao mundo, pertencer ao mundo da
arte, ao mundo estritamente como “arte”. O performer, ao suspender o pertencimento, não
pertence a nenhum mundo: nem ao mundo, nem ao mundo da arte, nem ao mundo como arte.
Não está em nenhum deles. E é exatamente ao não pertencer que o performer se autoriza a
criação de diferentes tipos de chão, pés, trajetos e cidade. Ao articular o programa performativo
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a uma pedagogia performativa, sua tentativa é não pertencer nem arte, nem a educação e nem
ao mundo. Mas é embaralhá-los todos. O que é arte? O que é educação? O que é mundo?
Para o Professor Sílvio Gallo, educar “significa lançar convites aos outros; mas o que cada um
fará com estes convites, foge ao controle daquele que educa”. (Gallo, 2008: 15). Uma vez que
aqui as reflexões das práticas pedagógicas se dão em movimento, em ação de deslocamento,
venho propondo um trabalho que ao invés de construir um começo e um fim se dispõe a
tensionar o sentido tradicional do método, sua produção de sentido e rigor do caminho,
tampouco se trata de uma ação sem direção, pois ao reverter o sentido tradicional do método o
que se busca é acompanhar processos e não representar formas, um tipo de conhecimento que
não se separa dos afetos. Propor uma pedagogia desde seu caráter performativo é criar desvios
do existir no mundo. Ela é, então, uma ação criadora e força performativa.
Rua Jeremias Maciel Perreto - Depois da porta já dentro de casa
“No hacer pedagogía para la escuela. No hacer arte para el museo. No hacer
activismo para la política. No hacer performances para el espetáculo. No
hacer escrituras para el aplauso. No hacer memorias para el monumento. No
hacer canon para la disidencia. No hacer nombre propio para el pensamiento
colectivo. No hacer identidad para el estado. No hacer rebanos para los
ídolos. No hacer romances para el amor. No hacer cuerpo para el capital. No
hacer animales para la humanidad. No hacer comunidad para lealtades
serviles. No hacer saberes para administrar destinos. No hacer
yotúelnosotrosustedesellos para organizar fronteras. No hacer sur para una
galería de víctimas. No hacer es um programa revolucionario.
Guaglione, F. et al. Flores: 185.)
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