Francisco Alfredo Morais Guimarães
POVOS INDÍGENAS E A GUERRA DAS IMAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA: (DES)EDUCANDO
O OLHAR COM BRICOLAGENS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO
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POVOS INDÍGENAS E A GUERRA DAS IMAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA:
(DES)EDUCANDO O OLHAR COM BRICOLAGENS PARA ADIAR O FIM DO
MUNDO
PUEBLOS INDÍGENAS Y LA GUERRA DE IMÁGENES EN LA ENSEÑANZA DE
LA HISTORIA: (DES)EDUCANDO LA MIRADA CON BRICOLAJES PARA
POSPONER EL FIN DEL MUNDO
INDIGENOUS PEOPLES AND THE WAR OF IMAGES IN THE TEACHING OF
HISTORY: (UN)EDUCATING THE GAZE WITH BRICOLAGE TO POSTPONE
THE END OF THE WORLD
Francisco Alfredo Morais Guimarães
Universidade do Estado da Bahia
fguimaraes@uneb.br
Resumo
O foco central desse artigo é a apresentação de uma experiência de pesquisa-ação sobre o uso
de imagens tratamento da temática indígena no ensino de História, onde demonstramos como
imagens consideradas ingênuas, como o quadro Primeira Missa no Brasil, do pintor brasileiro
Victor Meirelles, se caracterizam como um sofisticado e eficiente artefato na “guerra das
imagens” contra os povos indígenas, por construir e reforçar estereótipos que ainda
permanecem presentes no imaginário nacional. Ou seja, além da guerra com o uso de armas de
fogo ou o uso de agentes biológicos como armas, largamente utilizados ao longo da história do
Brasil, a guerra das imagens se faz presente desde o período colonial, com muitos dos seus
artefatos ainda sendo utilizados em livros didáticos, sem a adoção de procedimentos adequados
de leitura. A referência principal para essa reflexão é uma oficina de leitura de imagens
realizada com professores de História e estudantes da Escola Básica e Secundária Quinta das
Flores, na cidade de Coimbra, em Portugal, que integrou as atividades do Estágio Doutoral,
realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em 2013, onde foi possível
revelar o potencial desse trabalho no sentido de desafiar o mito do império português.
Palavras-chave: História e cultura indígena, bricolagem de imagens, uso didático de
imagens.
Francisco Alfredo Morais Guimarães
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Resumen
El enfoque central de este artículo es la presentación de una experiencia de investigación-acción
sobre el uso de imágenes en el tratamiento del tema indígena en la enseñanza de la Historia,
donde demostramos cómo imágenes consideradas ingenuas, como la pintura “Primera Misa en
Brasil” del pintor brasileño Victor Meirelles, se caracterizan como un sofisticado y eficiente
artefacto en la “guerra de las imágenes” contra los pueblos indígenas, por construir y reforzar
estereotipos que aún permanecen presentes en el imaginario nacional. Es decir, además de la
guerra con el uso de armas de fuego o el uso de agentes biológicos como armas, ampliamente
utilizados a lo largo de la historia de Brasil, la guerra de las imágenes ha estado presente desde
el período colonial, con muchos de sus artefactos aún utilizados en libros de texto, sin la
adopción de procedimientos adecuados de lectura. La referencia principal para esta reflexión
es un taller de lectura de imagenes realizado con profesores de Historia y estudiantes de la
Escuela Básica y Secundaria Quinta das Flores, en la ciudad de Coimbra, Portugal, que formó
parte de las actividades del Estágio Doutoral, realizado en el Centro de Estudios Sociales de la
Universidad de Coimbra, en 2013, donde fue posible revelar el potencial de este trabajo en el
sentido de desafiar el mito del imperio portugués.
Palabras clave: historia y cultura indígena, bricolaje de imágenes, uso didáctico de imágenes.
Abstract
The central focus of this article is the presentation of an action-research experience on the use
of images in the treatment of the indigenous theme in the teaching of History, where we
demonstrate how images considered naive, such as the painting "First Mass in Brazil" by the
Brazilian painter Victor Meirelles, are characterized as a sophisticated and efficient artifact in
the "war of images" against indigenous peoples, for building and reinforcing stereotypes that
still remain present in the national imaginary. That is, in addition to the war with the use of
firearms or the use of biological agents as weapons, widely used throughout Brazilian history,
the war of images has been present since the colonial period, with many of its artifacts still used
in textbooks, without the adoption of adequate reading procedures. The main reference for this
reflection is an image reading workshop conducted with History teachers and students of the
Basic and Secondary School Quinta das Flores, in the city of Coimbra, Portugal, which was
part of the activities of the Estágio Doutoral, held at the Center for Social Studies of the
University of Coimbra, in 2013, where it was possible to reveal the potential of this work in the
sense of challenging the myth of the Portuguese empire.
Keywords: Indigenous history and culture, bricolage of images, didactic use of images.
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Introdução
O trabalho aqui apresentado sobre o uso didático de imagens e a produção de bricolagens se
baseia nas categorias analíticas e ferramentas metodológicas pautadas na (des)educação do
olhar, combinando o fazer artístico com métodos científicos, visando a produção de
conhecimentos considerando a exploração dos sentidos da visão, olfato, audição e tato,
despertando uma experiência imagética (signos semióticos), convocando os participantes a um
estado de reflexão e subversão a respeito dos enquadramentos historicamente dados nas
representações dos povos indígenas em imagens, desde os primeiros contatos com os
portugueses.
A (des)educação do olhar está implicada com a noção de poiesis, que tem a ver com o propósito
de desvelamento, de desocultamento, no sentido de propiciar a emergência de algo novo, criado
com o objetivo de colocar em evidência algum aspecto ocultado que possa ser iluminado. Com
essa perspectiva metodológica, é possível demonstrar como imagens didáticas, utilizadas como
mera ilustração, apresentam representações em que prevalece a presença de estereótipos e a
ausência do protagonismo e capacidade de pensar e produzir conhecimento por parte de povos
e sujeitos sociais historicamente marginalizados, havendo, portanto, a necessidade da realização
de exercícios de leitura dessas imagens, que levem o observador a ver além do que está
condicionado a ver, reconhecendo os signos e que cada imagem possui e jogar com eles,
refletindo sobre seus processos de construção e possibilidades de desconstrução, se dando conta
do seu papel como leitor crítico e propositivo, capaz de imaginar outras formas de ver, e, a
partir dessa experiência, também poder se tornar autor de um novo objeto visual.
Dessa forma, nos colocamos na encruzilhada entre dois campos de investigação: de um lado, o
do tratamento da temática indígena no ensino de História e do outro, o uso de experiências
artísticas sensoriais, tomadas como instrumento de pesquisa, perspectiva que contempla o
pluralismo metodológico preconizado por Kincheloe (2006), através da interação entre a
bricolagem artística e bricolagem científica, que é um procedimento alternativo no campo da
pesquisa educacional, onde a construção do conhecimento se a partir da formação de uma
consciência crítica, comprometida com a interpretação dos fenômenos sociais, através da escuta
de diferentes vozes, principalmente dos grupos marginalizados, neste caso os povos indígenas,
enfatizando os campos simbólicos de luta presentes nos conflitos sociais.
Nessa encruzilhada, pudemos perceber a nossa condição como um pesquisador convertido em
realizador e os estudantes e professores envolvidos na pesquisa convertidos em fontes/sujeitos,
em uma ação perturbadora e reflexiva, por rompermos, juntos, cânones da pesquisa sobre o
ensino de história e as fronteiras definidas entre o pesquisador, professor, aluno, a arte e a vida.
Como destaca Pineau (2010), que trabalha com a performance na prática pedagógica, que é um
dos recursos que utilizo nesse trabalho de pesquisa:
“a poética da performance educacional privilegia do mesmo modo as
dimensões criativas e construídas da prática pedagógica. Ela
reconhece que educadores e educandos não estão engajados na busca
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por verdades, mas sim em ficções colaborativas continuamente
criando e recriando visões de mundo e suas posições contingentes
dentro delas. Uma poética educacional privilegia as múltiplas histórias
e os múltiplos narradores no processo em que as narrativas da
experiência humana são modeladas e compartilhadas por todos os
participantes em um coletivo de performance. A pedagogia
performativa suplanta o depósito de informações tal como aparece
no modelo de educação bancária de Paulo Freire em prol da
negociação e da encenação de novas formas de conhecimento.
Pineau, 2010: 97.
Produzindo bricolagens para adiar o fim do mudo
Nosso objetivo é analisar aqui a natureza da pesquisa desenvolvida, dando ênfase a um de seus
momentos, em Portugal, oportunidade em que foi possível desafiar o mito do império
português, problematizando situações e imagens historicamente naturalizadas e o delineamento
de outras formas de ver, outras maneiras de pensar sobre a história indígena, ao despertar o
posicionamento político dos participantes no estabelecimento de uma “ecologia de saberes”.
Da mesma forma que na pesquisa historiográfica de temática indígena, que contempla um
conjunto de técnicas e análises que buscam dar conta das especificidades desse campo temático,
no caso dessa investigação, além de considerar as particularidades da pesquisa no ensino de
história, fiz uso de linguagens artísticas com aspectos formais e estéticos singulares, com o
objetivo de estabelecer, junto à “fonte da pesquisa”, uma experiência sensorial em que se
buscou o estabelecimento de processos de (re)significação, questionando enquadramentos
hegemônicos dados ao conhecimento, ao ensino e a pesquisa sobre a temática indígena,
estabelecendo uma proposta educativa intercultural, levando em conta a necessidade das
políticas educacionais terem que superar os pensamentos dominantes e contemplar as diferenças
culturais sem a hierarquização de modelos culturais diferenciados (Walsh, 2006).
Para alcançar esse objetivo, foram consideradas as categorias sociologia das ausências e das
emergências, ecologia de saberes, interculturalidade e igualdade de saberes, propostas por
Santos (2010), que combina o arcabouço científico com o conhecimento popular. Essa
experiência é caracterizada por uma perspectiva transcultural, privilegiando o diálogo com o
ethos e a visão de mundo de sociedades indígenas, através de experiências evocativas,
integrativas e inusitadas, com o uso resinificado de pinturas corporais, cantos e danças rituais
indígenas, etnopoesias
1
temáticas e a montagem prévia de uma instalação artística, para
1
Conceito criado por Jerome Rothenberg na década de 60, para se referir produções poéticas baseadas na tradução
escrita e performática de poesias e canções tradicionais de povos indígenas.
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propiciar sensações táteis, odoríficas, auditivas e visuais, visando o estímulo à imaginação
criativa.
Em 2013, em um relatório realizado para o Ministério de Educação sobre as ações
desenvolvidas em Instituições de Ensino Superior sobre a história e cultura dos povos indígenas
no Brasil, Silva (2013) destaca essa experiência de pesquisa e ensino da temática indígena que
estávamos desenvolvendo na UNEB, como uma das ações comprometidas com a
implementação da lei 11.645 no âmbito das universidades no país, evidenciando:
“A primeira experiência de destaque refere-se ao trabalho do Prof.
Francisco Guimarães, que ministra História Indígena na UNEB,
Campus Alagoinha, e desenvolve pesquisa tanto sobre educação
indígena quanto sobre história indígena. O professor segue o método
cultural e desenvolveu abordagem aplicada à temática indígena, que
denominou de bricolagem, para o ensino da história indígena para não
indígenas, que consta de intervenções em imagens e outros materiais
consagrados pelo uso tradicional no ensino da história do Brasil, de
forma a deslocar o olhar do aluno e problematizar situações e imagens
naturalizadas pelo tempo com o intuito de ajudar o aluno a perceber
outras formas de pensar a presença indígena”
Silva, 2013: 33.
Conforme destaca a autora do relatório, essa experiência desenvolvida na UNEB tomou como
base dois artigos de nossa autoria
2
, e uma reportagem para a Revista Nova Escola
(Scapaticio
;
Nicolielo
, 2007), nos quais descrevo a pesquisa e o trabalho didático com a
produção de bricolagens e os resultados dessa experiência, enfatizando a necessidade da
educação do olhar na leitura de imagens visuais sobre os povos indígenas, considerando a
necessidade de se fazer a confrontação da iconografia didática com outras fontes e informações,
para fornecer suporte para possíveis interpretações.
Enfatizo nesses textos a questão do uso didático do quadro A Primeira Missa no Brasil, de
Victor Meirelles
3
, me referindo a ele como um paradigma para a compreensão dos processos
de modelagem de estereótipos e distorções conceituais sobre a temática indígena na escola. Isso
porque esse quadro é uma das imagens mais utilizadas para a representação didática dos povos
2
Apresento esses textos nas referências (Guimarães, 2008; 2010).
3
O quadro A Primeira Missa é uma pintura em óleo sobre tela do gênero de pintura histórica, feita entre 1859 e
1861, em Paris, inspirada na carta escrita por Pero Vaz de Caminha, em 1500. O estilo de pintura é influenciado
por padrões estéticos europeus que buscam a criação de figuras heroicas e exaltação da natureza. Sua natureza
estética está relacionada com o momento de afirmação do Estado Nacional e construção da identidade brasileira,
onde os povos indígenas tiveram a sua representação definida por esses princípios.
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indígenas, possuindo, junto com outras obras iconográficas a condição de imagem canônica,
por estar efetivamente incorporada em nosso imaginário coletivo, provocando efeitos
subliminares de rápida identificação (Saliba, 1997 Apud Bueno 2007:1).
Em função dessa questão, jutifico a tomada do quadro de Meirelles como referencia na pesquisa
e a sua bricolagem como forma de evidenciar a capacidade de leitura e produção simbólica do
povo Tupiniquim, com a tradução, para os seus próprios termos, do rito português, e os
exercícios de leitura do quadro tomam como base a questão do confronto ocorrido no nível do
simbólico, do imaginário, entre os indígenas e portugueses, tomando como referência os
conceitos de “guerra das imagens” (GruzinskI, 2006), “comunidade imaginada” (Anderson,
2008) e “pensamento abissal” (Santos, 2007) e o campo semântico em que os mesmos se
inserem. Vimos na produção de bricolagens uma possibilidade de estabelecer um mecanismo
de contraposição às narrativas coloniais, marcadas pelas hierarquias de classe, raça e de gênero,
pois, como afirmam Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016: 19):
“No discurso colonial, o corpo colonizado foi visto como corpo
destituído de vontade, subjetividade, pronto para servir e destituído de
voz (hooks, 1995). Corpos destituídos de alma, em que o homem
colonizado foi reduzido a mão de obra, enquanto a mulher colonizada
tornou-se objeto de uma economia de prazer e do desejo.”
Um dos resultados dessa experiência foi a produção da bricolagem Primeira Missa, Primeiro
Culto a Árvores Mortas na Invenção do Brasil”, na qual a cruz erguida no território Tupiniquim
é tomada enquanto signo na delimitação de espaços e cosmovisões entre os sujeitos
representados por Meirelles, definindo as tramas colonial e pós-colonial, o que é definido
através da atribuição de falas aos personagens, como forma de estabelecer uma contranarrativa
paródica acerca do discurso oficial da História do Brasil.
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Figura 1 Bricolagem Primeira Missa, Primeiro Culto a Árvores Mortas na Invenção do
Brasil
·
. Fonte: Acervo do autor
Na produção dessa bricolagem nos baseamos em dois conceitos fundamentais que utilizamos
como referencia nessa experiência, o de "mata cultural" (Balée, 1989) e selvageria culta
(Descola, 1999)
4
, que se contrapõem aos conceitos de "mata virgem" e selvageria”,
apresentando um novo enquadramento epistemológico e ético relativo a avaliação da relação
dos povos indígenas com o meio ambiente ao longo do tempo, conforme indicam uma série de
estudos sobre a datação de vestígios da presença humana realizados em sítios arqueológicos e
4
Esses conceitos colocam em evidência o fato de que as matas ocupadas milenarmente pelos povos indígenas no
Brasil só são virgens na imaginação ocidental, na medida em que nas mesmas, como afirma Philippe Descola, a
natureza é na verdade muito pouco natural, podendo ao contrário ser considerada o produto cultural de uma
manipulação muito antiga da fauna e da flora(DESCOLA, 1999, p. 115).
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avaliações genéticas e antropológicas de populações indígenas atuais, o que tem permitido a
reconstituição do seu longo e exitoso processo de povoamento realizado muito antes da
conquista e colonização portuguesa, destacando a abrangência dos seus conhecimentos no
manuseio inteligente dos recursos naturais.
Um exemplo dessa nova visão sobre a história indígena são os estudos realizados na região
amazônica pela equipe do arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), que tem identificado vestígios
arqueológicos relativos ao cultivo de plantas, com datações em torno de 8 mil anos AP, o que
permite deduzir que os povos indígenas desenvolveram nessa região um modelo agrícola
baseado no manejo e domesticação de uma grande variedade árvores e arbustos, o que lhes
permitiu viver em áreas de floresta, mantendo as florestas em (Neves, 2022). O que
sugerirmos com a apresentação no quadro de balões com falas dos indígenas e do padre
português, foi a imaginação de uma interpretação pelos Tupiniquim do ritual português e o
prenúncio por eles de uma cena reencenada ao longo da história do Brasil, com a crescente
invasão dos territórios indígenas e a exploração dos recursos naturais, colocando-os diante da
iminência do “fim do mundo”, ou, como dizem os xamãs do povo Yanomami, a “queda do
céu”.
O xamã e principal líder do povo Yanomami, Davi Kopenawa, é muito preciso em sua reflexão
sobre esse problema que aflige o seu povo e outros povos indígenas, e tem comprometido a vida
na Terra, no livro “A Queda do Céu”, que é fruto de 40 anos de diálogos entre ele e o antropólogo
francês Bruce Albert, onde afirma:
“A floresta está viva. vai morrer se os brancos insistirem em destrui-la. Se
conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se
desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra
ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das
montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito
longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar
para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia
que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que
transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro,
tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando
não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar”
Albert; Kopenawa, 2015: 6.
Em outro trecho do livro, o xamã apresenta a forma como o seu povo se refere ao que chamamos
de “natureza”, considerando a sua visão sobre o que definem como terra-floresta:
“O que eles chamam de natureza” é, em nossa língua, urihi a, a terra-
floresta e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que
nomeamos urihinari, o espírito da floresta. É graças a ela que as
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árvores são vivas. Assim, o que chamamos de espírito da floresta, são
as inumeráveis imagens das árvores, as das folhas que são seus cabelos
e as dos cipós. São também as dos animais e dos peixes, das abelhas,
dos jabutis, dos lagartos, das minhocas e até mesmo as dos grandes
caracóis warama aka. A imagem do valor de fertilidaderoperi da
floresta também é o que os brancos chamam de natureza. Foi criada
com ela e lhe a sua riqueza. De modo que, para nós, os
espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natureza, e não os
humanos”.
Albert; Kopenawa, 2015: 475.
A relação fala de Davi Kopenawa com a perspectiva apresentada na bricolagem pode ser
encontrada na reflexão de Lévi-Strauss sobre o livro “A queda do céu”:
“Antes mesmo da chegada dos brancos a mitologia ameríndia dispunha
de esquemas ideológicos nos quais o lugar dos invasores parecia estar
reservado: dois pedaços de humanidade, oriundos da mesma criação,
se juntavam, para o bem e para o mal. Essa solidariedade de origem se
transforma, de modo comovente, em solidariedade de destino, na boca
das vítimas mais recentes da conquista, cujo extermínio prossegue,
neste exato momento, diante de nós. O xamã yanomami cujo
testemunho pode ser lido adiante não dissocia a sina de seu povo da
do restante da humanidade. Não são apenas os índios, mas também os
brancos, que estão ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias
introduzidas por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma
catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a
condição de sobrevivência de cada um. Lutando desesperadamente
para preservar suas crenças e ritos, o xamã yanomami pensa trabalhar
para o bem de todos, inclusive seus mais cruéis inimigos. Formulada
nos termos de uma metafísica que não é a nossa, essa concepção da
solidariedade e da diversidade humanas, e de sua implicação mútua,
impressiona pela grandeza. É emblemático que caiba a um dos últimos
porta-vozes de uma sociedade em vias de extinção, como tantas outras,
por nossa causa, enunciar os princípios de uma sabedoria da qual
também depende e somos ainda muito poucos a compreendê-lo
nossa própria sobrevivência”.
Lévi-Strauss, 1993: 7
5
.
Com relação à pesquisa com a iconografia didática realizada em Portugal e as realizadas no
Brasil, o objetivo do trabalho com bricolagens de imagens foi a superação de estigmas e
5
Essa reflexão é apresentada como epígrafe no livro (Albert, Kopenawa, 2015).
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estereótipos que negam a condição de sujeitos sociais plenos dos povos indígenas, o que pode
ser constatado nos relatos apresentados por dois professores de História da Escola Quinta das
Flores, após uma partilha de depoimentos com seus alunos, que revelam a eficácia dos
procedimentos da pesquisa (Guimarães, 2014).
Se referindo a instalação que foi criada na sala de aula, com objetos de cultura material de povos
indígenas do Brasi colocados em meio a folhas secas espalhadas pelo chão, a execução de sons
da floresta amazônica e a minha presença cantando músicas e trocando instrumentos musicais
desses povos
6
, a professora Fernanda Castro
7
destaca a eficácia desse procedimento, apontado
que foi unânime a referência feita pelos seus alunos ao ambiente que os “transportou para a
terra do outro, de como é que o outro vivia antes dos portugueses chegarem”. Segundo ela, esse
recurso despertou nos alunos uma predisposição para novos conhecimentos, para novas
experiências, notando que
“Os alunos estavam muitos receptivos e foi uma parte que os cativou
bastante. A música, o pisar nas folhas, os sons, o cheiro, as sementinhas
espalhadas no chão. Eu penso que de alguma forma através desses
elementos se mostrou o ambiente da vivência do índio, que foi uma
dimensão pouco explorada por eles. A língua, algumas palavras que o
Francisco apresentou num canto em língua indígena, eles andavam a
cantarolar na aula seguinte. Eu não lembro, mas eles lembram.”
Castro, apud Guimarães, 2014: 216-21).
Corroborando que esse ponto de vista, o professor Pedro Cunha
8
, destacou ainda que:
“o fato de se fazer de uma outra forma causa sempre nos alunos um
impacto diferente da aula tradicional. Ao entrarem na sala, os alunos
vêm um professor que desconhecem, com adereços que não lhes são
familiares, descalço, com folhas espalhadas no chão, uma sala
organizada de forma diferente. Isso tem sempre um efeito motivacional
acrescido”.
Cunha, apud Guimarães, 2014: 217.
Considerando as sensações dos alunos, a partir dos estímulos à imaginação criativa
proporcionados por aquela performance, a professora Fernanda destacou:
6
Professora de História da Escola Básica e Secundária Quinta das Flores.
7
O uso que faço desses referenciais culturais e estéticos de povos indígenas se deve a minha experiência
profissional como indigenista na FUNAI, entre 1985 e 1987, desenvolvendo trabalhos de campo junto aos povos
indígenas Tikuna e Guajajara na região amazônica e atuando dois museus especializados em arqueologia e
etnologia indígena, o Museu Emílio Goeldi, em Belém e Museu do Índio da FUNAI, no Rio de Janeiro.
8
Professor de História da Escola Básica e Secundária Quinta das Flores.
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[ela]” foi muito bem-sucedida e foi um momento muito importante para
a formação deles. E se lhes perguntássemos se ficaram com a ideia de
que naquela floresta que os portugueses encontraram viviam
sociedades que partilhavam espaços onde desenvolviam sua vida social
dentro da própria floresta e como era aquela vivência, eu julgo que
sim. (…) Eu penso que através da oficina conseguiu-se transportá-los
à floresta, o que se passava, a forma como os índios se relacionava
com o espaço que os envolvia. (…) Agora, que eles ficaram com uma
percepção diferente da cultura indígena, sim. Porque passaram a ter
noção de uma tônica focada na crítica ao desrespeito e submissão do
índio pelo português, enfoque que não está presente no manual do 10º
ano”.
Castro, apud Guimarães, 2014: 230.
Ao se referir ao momento da performance em que foi feito o exercício de leitura do quadro “A
Primeira Missa no Brasil”, a professora Fernanda evidenciou sua surpresa ao ver os alunos
sendo conduzidos a um exercício de reflexão, onde foram se apartando de estigmas e
estereótipos presentes em seu imaginário sobre povos indígenas do Brasil e ícones na
conformação da identidade religiosa portuguesa. Segundo ela, os alunos:
“[...] abstraíram a simbologia que a cruz assume para nós,
portugueses, cristãos, conseguido transpor a representação do objeto
em si, a cruz, e a analisá-lo sob o prisma da observação do índio, que
via apenas dois troncos de árvores, não é? Era como se os
portugueses estivessem realmente a venerar dois troncos de árvores
mortas”.
Castro, apud Guimarães, 2014: 229.
Ainda segundo a professora, essa percepção dos alunos foi possível porque, através da
performance se conseguiu transportá-los, de fato, para aquela dimensão, pois, segundo ela:
“aquele pormenor da Primeira Missa, o erguer da primeira cruz com
os troncos das árvores e o fato dos índios olharem para aquela
construção e acharem que aquilo era a veneração a árvores mortas, foi
algo que de fato ficou na memória e os surpreendeu e que a mim
também surpreendeu. E foram os próprios alunos que chegaram a essa
conclusão do culto a árvores mortas, tanto em uma oficina como na
outra. E acabaram por se referir a isso mesmo. Claro, porque se
conseguiram transpor, se calhar, prá aquela realidade não é, no papel
do outro e a perceber: Estão a cortar árvores e a colocar uma na
vertical e outra na horizontal. Aquilo é o que? São árvores, não é? Eles
abstraírem-se do conceito cristão da cruz e chegarem a essa
Francisco Alfredo Morais Guimarães
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interpretação foi de fato interessante. Uma outra perspectiva, uma
outra abordagem. Gostei muito.”
Castro, apud Guimarães, 2014, p. 218.
Nesses relatos, é possível identificar as três orientações apresentadas por Santos e Menezes a
respeito da necessidade de uma (re)orientação dos indivíduos e ou grupos sociais em relação às
perspectivas descortinadas pela ecologia de saberes e as epistemologias do sul: aprender que
existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul (Santos; Menezes,
2009). Esse modo de ver a imagem implicou na participação ativa dos alunos, contextualiza na
realidade social da qual faziam parte e a partir da qual se posicionaram através do estímulo a
emergência de um estado de imaginação criativa
9
. Através desse estado, os alunos puderam
atuar como bricoleur, que é aquela pessoa que cria e recria coisas, utilizando resíduos e
fragmentos, que são coletados e manipulados na perspectiva da ressignificação, podendo
conferir a sua produção um caráter crítico inusitado. Como destacam Rampazo e Ichikawa
(2009):
“o bricoleur usa os signos, fazendo analogias e aproximações, que o
permite usar a criatividade no uso dos materiais e equipamentos. Isso
porque o bricoleur tem como característica montar estruturas
conforme seu entendimento. Ao fazer analogias entre maçãs e bananas,
o engenheiro irá buscar nos conceitos químicos e sicos o que é comum
entre as duas frutas; já o bricoleur busca nos signos que falam “por
meio das coisas” (Lévi-Strauss, 1976, p. 42) que são particulares a
um indivíduo ou de uma sociedade, aqueles que permitem agrupar os
elementos. Faz, portanto, escolhas entre possibilidades limitadas,
sempre colocando “algo de si mesmo” (Lévi-Strauss, 1976, p. 42) na
resolução do problema. E aqui cada pessoa pode percorrer um
caminho diferente”.
Rampazo; Ichikawa, 2009:4.
Essa referência dos autores a Lévi-Strauss se deve ao fato desse antropólogo, tomado como
base seus trabalhos de campo junto a povos indígenas, ter apontado para o “caráter
mitopoético” da bricolagem, reconhecendo-a como um modo de produção de conhecimento
estruturado por meio do trabalho e apoiado nas qualidades sensíveis do relacionamento direto
com elementos da natureza, o que, segundo ele, representa um dos modos possíveis do ser
humano organizar sua relação com o mundo, caracterizando o que ele conceituou como
“pensamento selvagem”, onde o onírico e o poético são elementos constitutivos de objetos
fabricados e fabulações cognitivas. Apesar desse conceito ter emergido de suas pesquisas junto
9
Uma forma de direção da imaginação para a criação de imagens e sensações através de processo de concentração
e emoção, utilizando dramatizações, instalações, poemas, metáforas e sequências específicas para as induções
perceptivas.
Francisco Alfredo Morais Guimarães
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O OLHAR COM BRICOLAGENS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO
198
a povos indígenas, o autor adverte que ele não deve ser considerado como um modo específico
de pensar restrito a povos indígenas, ainda que entre estes possa ser considerado como
dominante. Ou seja, ele descortina a existência do pensamento selvagem e não o pensamento
dos selvagens.
Nesse sentido, Lévi-Strauss sugere que se faça o emprego do termo bricolagem para se referir
a um modo de produção de conhecimento, reconhecendo os artistas, no contexto ocidental,
como sendo os indivíduos que “tem, por sua vez, algo de cientista e do bricoleur: com meios
artesanais, ele confecciona um objeto material que é, ao mesmo tempo, um objeto de
conhecimento” (Lévi-Strauss, 1976: 43).
Comparando os relatos colhidos na escola em Portugal com os relatos colhidos em escolas no
Brasil, inclusive escolas indígenas, constatamos que apesar das diferenças de identidade,
nacionais ou étnicas, tivemos reações e posicionamentos muito semelhantes dos participantes
dessa pesquisa-formação, pondo em evidência a importância da criação de um contexto para a
realização da experiência, principalmente com os estímulos à imaginação criativa
proporcionados pela realização de uma performance. Isso pode ser constatado no depoimento
de uma aluna do curso de História do Campus II da UNEB, na cidade de Alagoinhas, em uma
vivencia realizada em 1992, em que ela apresentou o seguinte depoimento:
“Achei esse trabalho interessante pela questão da inovação da
metodologia, de passar a história através de um vivenciar. Tudo me chamou
a atenção: tem o uso de instrumentos musicais, as músicas, os ritmos, as
diversas linguagens.
A gente tenta reportar nosso conhecimento a coisa vivida mesmo.
Primeiro fica na expectativa de querer saber como seria, como é um ritual
indígena, como é a dança, como são tocados os instrumentos, o
batendo assim, num ritmo lento, recorrente, hipnótico. Tá tá... A gente
entra sem saber o que vai acontecer e acaba entrando nessa coisa que é
o saber como sabor, vivenciando”.
Guimarães; Drummond, 1992:15
Em outra experiência, realizada anos depois, com alunos do curso de História do Campus I da
UNEB, em Salvador, tivemos a apresentação de um depoimento em que se destaca a
importância desse trabalho enquanto um exercício de educação do olhar, pondo em evidência
um aspecto importante nesse trabalho com o uso didático de imagens, que é a relação entre a
visão e a imaginação, destacando- se o seguinte:
“Na medida do possível, o professor tentou trazer um pouco da sua
sensibilidade como indigenista para a sala de aula. E isso foi
surpreendente, pois embora dentro da universidade, tivemos contato
não apenas com a objetividade do nosso estudo, mas com a
subjetividade também. Presenciei duas aulas nas quais o contato com
elementos presentes na cultura indígena foi diferente daquilo que
Francisco Alfredo Morais Guimarães
POVOS INDÍGENAS E A GUERRA DAS IMAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA: (DES)EDUCANDO
O OLHAR COM BRICOLAGENS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO
199
costumeiramente caracteriza a produção acadêmica. A última aula
então foi fantástica e inesquecível, a mais marcante para todos nós.
Eu entrei na sala de aula e foi surpreendente, não pelo fato de não
imaginar do que se tratava, mas por aguçar minha imaginação, me
levando a compreender cada elemento que se apresentava a minha
visão. Eu fazia leituras e releituras enquanto aquele momento
misterioso se desvelava envolta de mim.
Fui levada a compreender cada elemento que se apresentava a minha
visão. Eu fazia leituras e releituras enquanto aquele momento
misterioso se desvelava em volta de mim”.
Bittencourt, 2019:1.
Em outro depoimento apresentado nessa mesma oficina de pesquisa realizada em Salvador, foi
destacada a importância desse trabalho no processo de formação do professor de História, com
um aluno destacando:
“Na formação de alunos no curso de história é extremamente
necessário esse diálogo no ensino, gerando um contato mais próximo
com outras culturas, quebrando a “cegueira” herdada no ensino
básico, desfazendo um ciclo de má educação. O professor formado a
partir daqui, terá uma melhor conscientização e entenderá melhor a
diferença e a importâncias de cada cultura, com suas
individualidades e importância de sua preservação e os signos que
evocam a complexidade e resistência dos vários povos que habitam o
espaço chamado Brasil”.
Leal, 2019: 1.
Esses depoimentos indicam a importância do desenvolvimento de práticas pedagógicos
inovadoras, pautadas na criatividade e no posicionamento político do educador, perspectiva que
está em consonância com o que Paulo Freire defende em relação às nossas decisões e presença
no mundo, afirmando:
“Que a nossa presença no mundo, implicando escolha e decisão, não
seja uma presença neutra. A capacidade de observar, de comparar, de
avaliar para, decidindo, escolher, com o que, intervindo na vida da
cidade, exercemos nossa cidadania, se erige então como uma
competência fundamental. Se a minha não é uma presença neutra na
história, devo assumir tão criticamente quanto possível sua
politicidade. Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a
ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-
lo
sem
um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda
possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas
para participar de práticas com ela coerentes”.
Freire, 2000:33.
Francisco Alfredo Morais Guimarães
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200
Essa visão política destacada por Paulo Freire foi colocada em evidência no depoimento do
professor indígena Onalvo Jesus dos Santos Kiriri, em uma oficina de pesquisa sobre a adoção
dos livros do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) de História,
sintetizando as reflexões apresentadas pelo conjunto dos seus colegas sobre o uso de uma
caravela para ilustrar a capa do Guia Nacional do Livro Didático de História de 2012 e o
problema do uso do termo “Descobrimento do Brasil” nos livros de História, destacando
10
:
“Esse termo descobrimento a gente observa que tem várias teorias
próprias, tem vários termos. Foi invadido, foi roubado. Olhando aqui
eu vejo que há vários pensamentos. Eu acredito que tem que haver uma
explicação, uma reflexão sobre esses diferentes termos. Temos o termo
descobrimento utilizado pelos colonizadores, que vieram com outra
visão e começaram a explorar as riquezas que encontraram aqui e
começaram a transformar e também começaram a dizimar, a
escravizar os próprios nativos que existiam também.
Aí, muitas coisas foram transformadas. Trouxeram uma língua
diferente para colonizar, pra dominar. E hoje é uma luta muito longa
dos povos indígenas no Brasil pra contravencer esse tipo de imagem
que é muito forte. Porque o dominante estava lá, estava com suas leis.
Estava no palácio dele e mandando as leis para os povos
indígenas acompanhar a mesma cultura.
Nós podemos observar que nós não somos nem chamados de nação
indígena, nós somos, nós fazemos parte da nação brasileira. Somos
chamados de povos indígenas. Mas as primeiras nações são as dos
povos indígenas do Brasil. É onde o dominante diz que não. Ele
chega e diz: através da língua nós podemos dominar os povos
indígenas de forma mais radical.
É isso que a gente que faz parte do movimento indígena percebe. É
muito forte a gente contravencer essa palavra descobrimento. Os
historiadores são os mais a defenderem essa palavra descobrimento,
porque se eles não defendessem, com certeza tinham mudado a
palavra descobrimento.
10
Esse depoimento faz parte dos registros da pesquisa colaborativa realizada com professores indígenas Kiriri, em
2012, através do Observatório da Educação Escolar Indígena, Núcleo Yby Yara, que reuniu pesquisadores
indígenas e não indígenas com o objetivo de construir maior cooperação político/acadêmica entre a universidade
e a escola indígena. Essa pesquisa colaborativa integra a investigação que realizamos no Doutorado no Programa
de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA (Guimarães, 2014).
Francisco Alfredo Morais Guimarães
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[...] Eu vejo que a educação é que pode transformar tudo isso aí. A
educação. É através das universidades, é através de um estudo mais
aprofundado sobre a história do Brasil dentro das instituições, para
que leve dentro do pensamento dos próprios mestres que estão
dentro, dos próprios acadêmicos ali, essa visão. Não uma visão
preconceituosa como a gente está vendo aí, essa visão bem baixa,
vamos dizer assim de centésima categoria dos povos indígenas”
Kiriri, 2012: 1.
Na fala do professor Onalvo, fica evidente sua posição crítica em relação ao uso do termo
“Descobrimento do Brasil”, contextualizando-o a partir do seu olhar enquanto professor e
ativista indígena, em oposição a seu uso pelos colonizadores e a sua defesa pelos historiadores.
De forma crítica e propositiva, o professor formula o conceito “contravencer”, que define o
protagonismo e a autoria indígena e o poder transformador da educação, reconhecendo nela
uma possibilidade de intervir na realidade, demonstrando a indissiociação entre a educação e o
projeto social e político dos povos indígenas e o processo de politização que deve ser vivenciado
na universidade pelos mestres e acadêmicos, com vistas a uma mudança da visão
preconceituosa em relação aos povos indígenas.
Em 2015, esse trabalho com a produção de bricolagens ganhou um novo patamar, por conta do
nosso interesse em participar da 9
a
Primavera dos Museus, uma temporada cultural coordenada
pelo Instituto Brasileiro de Museus-Ibram, que teve como tema “Museus e Memórias
Indígenas”. Esse interesse nos levou a buscar o suporte técnico e a expertise de colegas da TV
UNEB para que as bricolagens estáticas da pesquisa pudessem ser transformadas em uma
animação, visando compor uma exposição no Museu de Ante da Bahia MAB.
Nessa exposição, intitulada "Povos Ingenas, Floresta Cultural, Mercantilismo e
Selvageria Culta"
11
. tivemos a apresentação de imagens e objetos de cultura material de
povos indígenas relacionados a cultura agrícola e alimentar da mandioca, a apresentação
de registros documentais do período colonial e a exibição de uma bricolagem audiovisual
que criamos para o evento, denominada “Povos |indígenas e a Primeira Missa no Brasil:
diferentes formas de ver, diferentes maneiras de pensar”. Além disso, semelhante ao que
fazemos nas oficinas de pesquisa com bricolagem, também criamos uma instalação na sala
de exposição, que foi composta com mudas de mandioca e folhas secas espalhadas pelo
chão, simulando uma roça, como pode ser visto nesse registro fotográfico:
11
Essa exposição teve como objetivo mostrar a cultura agrícola e alimentar da mandioca como um paradigma em
relação a noção econômica do Bem Viver indígena, baseado sofisticação e sustentabilidade de seus sistemas
produtivos, em contraposição ao caráter insustentável e excludente do mercantilismo europeu.
Francisco Alfredo Morais Guimarães
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Figura 2- Exposição Povos Indígenas, Floresta Cultural, Mercantilismo e
Selvageria Culta- MAB, 2015. Fonte: Acervo do autor
Após a realização da exposição, decidimos “dar vida ao vídeo”, criado um canal no Youtube
12
para que ele ficasse disponível para acesso. Atualmente, essa animação conta com mais de
quatro mil visualizações, o que nos permite deduzir que além do trabalho em sala de aula, os
materiais didáticos audiovisuais possuem uma condição diferenciada, dada a facilidade cada
vez maior de sua produção e veiculação, podendo contribuir com a democratização do
conhecimento que produzimos na universidade.
Outra questão importante em relação a essa nova forma de trabalhar com as imagens, foi a
impossibilidade, durante o período crítico da pandemia, de dar continuidade ao trabalho
colaborativo com os colegas da TV UNEB na produção de novos vídeos, justamente num
momento em que esse trabalho se mostrava mais necessário, considerando que todas as nossas
12
Esse canal possui o link de acesso
https://www.youtube.com/@UNEB.HISTORIA_INDIGENA/videos
e foi
criado para disponibilizar para alunos, professores de história e o público em geral, vídeos de temática indígena,
em especial produções realizadas através de projetos de Iniciação Científica e Monitoria de Extensão,
desenvolvidos com alunos da Universidade do Estado da Bahia -UNEB, com ênfase o uso didático de imagens de
temática indígena, visando o cumprimento do que determina a lei 11645/08, que estabelece a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura dos povos indígenas, da África e afro-brasileiros na Educação Básica. Atualmente, o
canal conta com 677 inscritos e mais de 54 mil visualizações.
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atividades tinham passado a ser desenvolvidas de forma remota. Isso nos projetou em uma nova
experiência, que foi a iniciação no domínio de programas e técnicas de edição de vídeos, o que
resultou em nossa atuação nessa área, passado a produzir vídeos e também realizar cursos de
extensão, onde tenho buscando o repasse desse conhecimento para alunos do curso de História
e professores da Educação Básica, fazendo isso de forma presencial e remota.
Considerações finais
Conforme exposto ao longo desse artigo, os exercícios de bricolagem de imagens de temática
indígena aqui apresentados estão comprometidos com o rompimento de versões historiográficas
dominantes, que dentro dos parâmetros delineados pela ecologia de saberes proposta por Santos
(2009), se caracteriza como uma “heresia epistemológica” ou “contraepistemologia”, por
evidenciar a necessidade de “contravencer” a imagem de um “exclusivismo epistemológico”
colonial. Elas devem ser consideradas enquanto dispositivos pedagógicos que estão em sintonia
com ações coerentes com uma utopia comum que, parafraseando Paulo Freire, pode ser definida
pelo propósito de assumir tão criticamente quanto possível uma politicidade compartilhada.
Nesse sentido, consideramos esse trabalho de pesquisa-ação o uso didático de imagens de
temática indígena como uma abordagem que está em consonância com a implementação da Lei
11.645/2008, que explicita a necessidade de uma disputa política contra hegemônica no
processo de construção de novos conceitos, noções, práticas e parâmetros interpretativos
específicos em relação ao ensino da História e Cultura dos Povos Indígenas.
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Francisco Alfredo Morais Guimarães
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206
Dr. Francisco Alfredo Morais Guimarães.
Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Possui graduação em História,
mestrado em Educação e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal
da Bahia, com estágio doutoral na Universidade de Coimbra-PT.