Taís Pereira
ENTRE O MAPA E O RITO: O ITINERÁRIO DE BENJAMIN DE TUDELA E A TRADUÇÃO
SIMBÓLICA DO MUNDO
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ENTRE O MAPA E O RITO: O ITINERÁRIO DE BENJAMIN DE TUDELA E A
TRADUÇÃO SIMBÓLICA DO MUNDO
ENTRE EL MAPA Y EL RITO: EL ITINERARIO DE BENJAMÍN DE TUDELA Y
LA TRADUCCIÓN SIMBÓLICA DEL MUNDO
BETWEEN THE MAP AND THE RITE: BENJAMIN OF TUDELA’S ITINERARY
AND THE SYMBOLIC TRANSLATION OF THE WORLD
Taís Pereira
Universidade Federal de Santa Catarina
taisnathannypereira@gmail.com
Resumo
Este artigo propõe uma análise historiográfica do Itinerário de Benjamin de Tudela, escrito no
século XII, à luz das teorias contemporâneas sobre memória, tradição e imaginário histórico. A
partir de uma leitura crítica e interdisciplinar, o texto é compreendido não apenas como relato
de viagem, mas como artefato simbólico de reinscrição identitária e de resistência cultural
judaica em contexto diaspórico. Argumenta-se que o Itinerário opera segundo uma lógica
narrativa marcada pela temporalidade litúrgica e pela justaposição paratática, que resiste à
linearidade histórica moderna. O artigo integra também os aportes da História Global de modo
a evidenciar como o texto antecipa práticas de circulação e construção de sentido transregionais.
A noção de regime de historicidade, tal como desenvolvida por Hartog, é mobilizada para
compreender a forma como passado, presente e futuro se articulam na obra de Benjamin, numa
temporalidade estruturada pela repetição ritual e pela expectativa messiânica. De igual modo,
o imaginário coletivo é abordado como matriz produtiva de significações, sustentando a
continuidade cultural em meio à ausência de centralidade territorial.
Palavras-chave: Benjamin de Tudela; Memória e tradição; Imaginário histórico; História
Global; Regimes de historicidade.
Resumen
Este artículo propone un análisis historiográfico del Itinerario de Benjamín de Tudela, escrito
en el siglo XII, a la luz de las teorías contemporáneas sobre la memoria, la tradición y el
imaginario histórico. A partir de una lectura crítica e interdisciplinaria, el texto se comprende
no solo como relato de viaje, sino como artefacto simbólico de reinscripción identitaria y de
resistencia cultural judía en contexto diaspórico. Se argumenta que el Itinerario opera según
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una lógica narrativa marcada por la temporalidad litúrgica y la yuxtaposición paratáctica, que
resiste a la linealidad histórica moderna. El artículo integra también los aportes de la Historia
Global con el fin de evidenciar cómo el texto anticipa prácticas de circulación y construcción
de sentido transregionales. La noción de régimen de historicidad, tal como fue desarrollada por
Hartog, se moviliza para comprender la forma en que pasado, presente y futuro se articulan en
la obra de Benjamín, en una temporalidad estructurada por la repetición ritual y la expectativa
mesiánica. Asimismo, el imaginario colectivo se aborda como matriz productiva de
significaciones, que sostiene la continuidad cultural en medio de la ausencia de centralidad
territorial.
Palabras clave: Benjamín de Tudela; Memoria y tradición; Imaginario histórico; Historia
Global; Regímenes de historicidad.
Abstract
This article proposes a historiographical analysis of The Itinerary of Benjamin of Tudela,
written in the twelfth century, in light of contemporary theories of memory, tradition, and the
historical imaginary. Through a critical and interdisciplinary reading, the text is understood not
merely as a travel account but as a symbolic artifact of identity reinscription and Jewish cultural
resistance in a diasporic context. It is argued that the Itinerary operates according to a narrative
logic marked by liturgical temporality and paratactic juxtaposition, which resists modern
historical linearity. The article also incorporates contributions from Global History in order to
demonstrate how the text anticipates transregional practices of circulation and meaning-
making. The notion of a regime of historicity, as developed by Hartog, is employed to
understand how past, present, and future are articulated in Benjamin’s work, within a
temporality structured by ritual repetition and messianic expectation. Likewise, the collective
imaginary is approached as a productive matrix of meanings, sustaining cultural continuity
amid the absence of territorial centrality.
Keywords: Benjamin of Tudela; Memory and tradition; Historical imaginary; Global History;
Regimes of historicity.
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Introdução
As narrativas judaicas medievais constituem uma chave interpretativa fundamental para a
compreensão dos dispositivos simbólicos que moldaram o imaginário ocidental e das
estratégias de resistência cultural em contextos de deslocamento. O Itinerário de Benjamin de
Tudela, escrito entre 1160 e 1173, emerge nesse cenário como mais do que uma descrição
factual de geografias e comunidades judaicas: trata-se de uma cartografia ritual e mnemônica
da experiência diaspórica, na qual memória, tradição e imaginário articulam-se como formas
de reinscrição identitária frente à fragmentação territorial e ao trauma da dispersão. A análise
da obra nos revela o Itinerário como um texto liminar situado entre a história e o rito, entre
o espaço físico percorrido e o espaço simbólico construído. A organização não linear e a
estrutura fragmentária da obra denunciam uma temporalidade outra, vinculada ao que Gabrielle
Spiegel denomina "reencenação ritual do passado", e o à cronologia moderna do progresso
linear.
Muito além da curiosidade geográfica ou do desejo de catalogação, o que se expressa no texto
é um esforço deliberado de reconstrução da memória coletiva, articulado por uma linguagem
ritualizada que combina observação, rememoração e esperança messiânica. O texto mobiliza o
que François Hartog definiu como um regime de historicidade tradicional, no qual o passado
exerce primazia normativa e o futuro é concebido como promessa escatológica, e não como
projeto secular. A geografia, nesse contexto, não é apenas um dado empírico é, sobretudo,
uma topologia do pertencimento, na qual cada lugar carrega um valor de significação ritual,
histórico e escatológico.
No entanto, para além da abordagem interna ao texto e à tradição historiográfica judaica, faz-
se necessário compreender o Itinerário também sob a luz dos deslocamentos epistemológicos
recentes no campo da historiografia, especialmente os trazidos pela História Global. Autores
como François Hartog, Sebastian Conrad e Marcelo Cândido da Silva propõem repensar as
formas de inscrição temporal e espacial da história, convocando-nos a ultrapassar os limites do
modelo nacionalista e a considerar múltiplas escalas e regimes de historicidade. Nesse sentido,
Benjamin de Tudela torna-se figura exemplar não apenas de uma memória coletiva judaica,
mas de uma experiência histórica conectada, que desafia os enquadramentos convencionais e
aponta para práticas de circulação, tradução e ressignificação cultural em escala
intercontinental.
Assim, o presente artigo parte da hipótese de que o Itinerário de Benjamin de Tudela deve ser
lido como um artefato de memória litúrgica, inserido em um regime de historicidade que
privilegia a repetição e a rememoração como formas de presença do passado. A análise conjuga
três eixos principais memória, tradição e imaginário compreendidos como operadores
históricos e culturais de produção de sentido em contextos de dispersão. A memória é aqui
pensada como sistema ativo de seleção e reorganização do passado, segundo Patrick Geary; a
tradição, como prática performativa de reinscrição simbólica, nos termos de Spiegel e Martins;
o imaginário, como campo estruturante de imagens e símbolos que organizam a inteligibilidade
da experiência histórica.
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Do ponto de vista metodológico, este estudo adota uma abordagem histórico-hermenêutica,
centrada na análise interna da fonte e na relação entre forma narrativa e produção de sentido
histórico. A interpretação do Itinerário busca compreender não apenas o que é dito, mas como
e por que é dito, articulando escolhas textuais e discursivas com regimes de temporalidade e de
memória ativados pelo autor. Seguem-se, nesse sentido, as orientações de Estevão de Rezende
Martins para a crítica das fontes, especialmente os critérios de realismo mitigado, plausibilidade
narrativa e reconstrução crítica, entendidos como mecanismos para interrogar o texto medieval
para além da dimensão factual.
A análise é conduzida em três eixos complementares - memória, tradição e imaginário - tratados
não como categorias abstratas, mas como operadores culturais de produção de sentido. Para
tanto, o estudo articula a leitura da fonte com aportes teóricos de Gabrielle Spiegel, Patrick
Geary, Paul Ricoeure François Hartog, entre outros, considerando suas contribuições para o
entendimento de temporalidades não modernas, práticas mnemônicas e mediações simbólicas.
A metodologia, portanto, combina análise textual, interpretação conceitual e comparação
interdisciplinar de matrizes culturais. Por fim, o procedimento de leitura busca identificar os
pontos da narrativa em que o relato de viagem opera como gesto ritual e como reinscrição
identitária, aproximando-se da perspectiva de Martins segundo a qual o documento histórico
não apenas representa, mas produz sentidos para o passado. Nessa direção, o Itinerário é tratado
como fonte não apenas descritiva, mas performativa, um artefato que constrói memória
enquanto narra o mundo.
O contexto histórico e intelectual do século XII
A obra de Benjamin de Tudela não pode ser compreendida sem referência ao quadro de intensas
transformações culturais e econômicas que caracterizou o século XII. Esse período, descrito
por Charles Haskins como o “Renascimento do Século XII”, foi marcado pela rearticulação das
rotas mediterrânicas, pela expansão do comércio e pelo florescimento de centros urbanos e
intelectuais na Península Ibérica, na Provença e no Oriente. É nesse ambiente de mobilidade e
tradução que se insere o itinerário de Benjamin: um tempo em que os saberes circulavam entre
Toledo, Alexandria, Constantinopla e Bagdá, e em que judeus, cristãos e muçulmanos
compartilhavam não apenas o espaço físico, mas também uma gramática comum de
peregrinação, hospitalidade e escrita.
A Península Ibérica, em particular, representava um laboratório singular de convivência e
tensão entre culturas. As comunidades judaicas de Sefarad - como Tudela, Toledo, Lucena e
Córdoba - foram, durante séculos, centros de ensino e de exegese bíblica, mas também de
filosofia e ciência, graças ao contato com a tradição greco-arábica. Nesse ambiente floresceram
figuras como Maimônides e Judah Halevi, cujas obras, assim como a de Benjamin, expressam
a dupla condição de enraizamento e errância. A escrita judaica do período, marcada pela tensão
entre o exílio e a promessa messiânica, converte-se em um espaço de mediação entre tempos e
mundos.
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Do ponto de vista político, o itinerário de Benjamin também reflete o entrelaçamento de
impérios e poderes locais - bizantinos, almóadas, cruzados -que configuravam uma geopolítica
fragmentada e interdependente. O viajante atravessa territórios sob distintas soberanias e
credos, descrevendo não apenas as comunidades judaicas, mas também os espaços de
convivência entre religiões. Esse olhar transconfessional antecipa a sensibilidade comparativa
que a historiografia global contemporânea busca resgatar.
Intelectualmente, o século XII foi um momento de expansão da escrita histórica e da
valorização da experiência do viajante como fonte de autoridade. A figura do viajante-
historiador, que observa e narra, surge como mediador entre mundos e tempos. Nesse sentido,
o Itinerário participa de uma ampla tradição de textos de viagem e de relatos de deslocamento,
das peregrinationes cristãs às descrições muçulmanas do Rihla, mas ressignifica esse gênero ao
inserir nele uma dimensão litúrgica e mnemônica. A viagem de Benjamin é, ao mesmo tempo,
percurso geográfico e rito de memória: o deslocamento físico espelha uma travessia espiritual
e coletiva.
Compreender esse contexto permite reconhecer o Itinerário de Benjamin de Tudela como
produto e testemunho de uma cultura da mobilidade, em que o trânsito de homens e ideias se
torna fundamento da própria construção histórica. A obra, portanto, situa-se no cruzamento
entre o testemunho empírico e a especulação teológica, entre o comércio e o exílio, entre o
mapa e o rito - dimensões que fazem de Benjamin de Tudela não apenas um viajante medieval,
mas um intérprete precoce da história conectada e plural que hoje buscamos reconstituir.
Memória litúrgica e narrativa histórica no Itinerário de Benjamin de Tudela
O Itinerário de Benjamin de Tudela, composto entre 1160 e 1173, é mais do que um relato de
viagem ou inventário de comunidades judaicas espalhadas pela bacia mediterrânica e pelo
Oriente. Ele pode ser lido como uma prática de reinscrição simbólica do exílio, em que o
movimento espacial adquire estatuto de rito e a descrição do espaço converte-se em exercício
de rememoração sagrada, como escreve Benjamin ao referir-se a Jerusalém: a porção inferior
do muro da Torre de David, com a extenção de cerca de dez cúbitos, é parte da antiga fundação
estabelecida por nossos ancestrais [...] Em frente a esse lugar encontra-se o muro ocidental, que
é um dos muros do Santo dos Santos. Este é chamado ‘a Porta da Mercê”, e para ali vêm todos
os judeus afim de orar diante do muro do pátio do Templo (Benjamin de Tudela, p. 74-45).
Nesse sentido, a obra se insere no que Gabrielle M. Spiegel define como estrutura narrativa
vinculada ao “tempo litúrgico”, em que a experiência histórica é absorvida por uma
temporalidade circular, sacramental, capaz de atualizar o passado sagrado no presente do
narrador.
Spiegel argumenta que, na tradição judaica medieval, os textos históricos não operam com a
lógica moderna da cronologia progressiva, mas sim com uma temporalidade densa e
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acumulativa, marcada pela recitação de eventos fundadores e pelo retorno ritual ao tempo da
Escritura. Assim, quando Benjamin visita Jerusalém, a cidade não é descrita apenas como um
lugar físico devastado, mas como um locus mnemônico, impregnado pela presença ausente do
Templo, uma “ruína ativa” que ancora a esperança messiânica. Cada cidade, cada comunidade
mencionada, transforma-se em fragmento de um corpo disperso o corpo de Israel
reconstituído pela escrita. Essa estrutura narrativa faz do texto um espaço de confluência entre
história, memória e rito. Michel de Certeau, ao analisar o estatuto da escrita histórica, observa
que “toda narração é um gesto ritual, um modo de tornar presente o ausente” (A escrita da
história, 1975). Em Benjamin, esse gesto assume caráter litúrgico: ao enumerar nomes,
quantificar judeus, descrever sinagogas e sepulturas, ele realiza uma “contagem sagrada”, uma
espécie de inventário espiritual da dispersão. A lista, aparentemente neutra, converte-se em
forma de oração. A introdução do Itinerário registra que: em cada lugar que entrou, fez um
registro de tudo que viu, ou que lhe foi contado por pessoas de digna confiança coisas que
nunca se ouviu falar anteriormente na terra de Sefarad (Eapanha). Ele também menciona alguns
dos sábios e homens ilustres residentes em cada lugar. (Benjamin de Tudela, p. 37). O texto não
apenas documenta o mundo, mas o reorganiza simbolicamente, criando uma continuidade entre
o exilado e seus ancestrais.
A escolha de Benjamin por uma organização paratática, tal como observa Spiegel, dispensa
articulações causais ou progressões teleológicas: o relato se faz por justaposições, em que o
significado emerge menos da linearidade do enredo e mais da constelação de sentidos
acumulados. Essa estrutura favorece o que Spiegel e Koselleck denominam de “simultaneidade
do não simultâneo”, possibilitando que o presente da diáspora reverbere como nova encarnação
de exílios passados o egípcio, o babilônico, o romano. A narrativa se torna, assim, um gesto
de atualização simbólica e teológica da experiência coletiva, em que o tempo sagrado se impõe
sobre o tempo histórico. Essa forma de escrita aproxima o Itinerário daquilo que Paul Ricoeur
denominou “tempo narrado”, em oposição ao tempo cronológico. Para Ricoeur (Tempo e
narrativa, 1983), a narrativa é o lugar onde o tempo humano se torna inteligível, e o ato de
contar cria uma ponte entre o vivido e o lembrado. Em Benjamin, o tempo narrado é também
tempo ritual: cada fragmento de memória é reinscrito como se fosse novo, e o passado torna-se
continuamente presente por meio da leitura.
A perspectiva de Patrick Geary sobre a memória como instrumento de reconstrução identitária
também é fecunda para entender a lógica do Itinerário. Para Geary, a memória social não é um
repositório passivo, mas um sistema seletivo, orientado pelas demandas do presente e pelo
desejo de permanência. Nesse quadro, Benjamin atua como agente de preservação e
reorganização de uma identidade dispersa, atribuindo inteligibilidade às comunidades visitadas
não por seu papel na história universal, mas por seu vínculo com um passado fundador, um
tempo tico que ressurge na escrita. Em outras palavras, sua obra tensiona os limites entre
documento e monumento, entre crônica e midrash. O Itinerário, sob essa perspectiva, é mais
do que testemunho é ato de seleção e reordenação simbólica. Benjamin organiza o espaço
segundo uma lógica espiritual: não busca coerência geográfica, mas coesão identitária. O mapa
é substituído pela memória. Em termos metodológicos, isso confirma a tese de Estevão de
Rezende Martins de que o documento histórico não deve ser tomado como reflexo do real, mas
como forma de produção de sentido. Ao mobilizar o “realismo mitigado” e a “plausibilidade
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narrativa” como critérios de leitura, Martins sugere que o historiador deve compreender o texto
medieval como construção de inteligibilidade, não como registro factual.
Essa tensão entre passado litúrgico e experiência vivida é central também na leitura de Frances
A. Yates sobre as práticas mnemônicas da Idade Média. Embora Yates se concentre na tradição
cristã e escolástica, sua análise sobre a arte da memória e a formação de loci internos
estruturados por imagens vívidas e emocionais oferece uma chave interpretativa para
compreender as formas como o judaísmo diaspórico construiu seus próprios “teatros de
memória”, mesmo sem os monumentos materiais do mundo cristão. No caso judaico, como
destaca Yates e complementa Andreas Huyssen, a ausência de templos ou ícones não implica
ausência de memória, mas exige a criação de estruturas mnemônicas textuais e litúrgicas que
sustentem a coesão cultural.
A partir das categorias metodológicas de Estevão de Rezende Martins, o texto de Benjamin
pode ser compreendido como uma fonte que condensa ao mesmo tempo “[...] a distância entre
o vivido e o narrado, entre o autor e seu mundo, entre a construção textual e a expectativa de
verdade” (Martins, 2015, p. 14). Em sua crítica da fonte, o autor propõe que a análise histórica
deve trabalhar com a tensão entre o realismo mitigado e a plausibilidade narrativa, tratando os
relatos não como simples repositórios de fatos, mas como “formas de construir, partilhar e
disputar sentidos do passado no presente” (p. 16). O Itinerário não apenas comunica o que o
autor viu ele performa uma tradição, reconstrói genealogias e reinscreve o mundo disperso
dos judeus em uma gramática de continuidade.
A obra pode, assim, ser interpretada como parte de uma historiografia não estatal, não
eurocentrada, e profundamente conectada ao que Sebastian Conrad descreve como uma
“historicidade conectada”, na qual diferentes regimes de tempo e de sentido convivem
simultaneamente. Para Conrad, “o ponto de partida da história global é a rejeição de modelos
lineares e teleológicos da modernidade” (Conrad, 2017, p. 81), permitindo pensar formas
alternativas de organização do tempo histórico como a de Benjamin , que escapam aos
critérios ocidentais de evidência, cronologia e progresso. A escrita do Itinerário funciona,
assim, como gesto de tradução cultural e resgate de uma memória coletiva transregional, não
subordinada ao eixo europeu.
Sob essa ótica, o texto de Benjamin atua como ritual escrito: cada parada, cada número de
judeus contados, cada sinagoga mencionada, cada mártir recordado, torna-se uma espécie de
candelabro aceso no mapa da dispersão. Tal operação confere à obra um duplo estatuto: por um
lado, de registro factual ainda que parcial e moldado por subjetividades ; por outro, de
gesto performativo, em que o ato de narrar é já, em si, uma forma de lembrar e resistir. Como
aponta Martins, “a história não pode ser confundida com o passado, nem o texto histórico com
a cópia do real; mas ambos guardam, em suas formas, os vestígios do tempo vivido” (p. 9).
Esse entrelaçamento de memória, rito e narrativa permite que o Itinerário seja lido também
como um artefato de historicidade não moderna. François Hartog, ao discutir os “regimes de
historicidade”, propõe que diferentes culturas organizam o tempo de modos distintos e que
o presentismo contemporâneo contrasta radicalmente com o regime litúrgico ou exemplar que
marcou sociedades anteriores à modernidade. Como observa o autor, “a história é uma maneira
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de ordenar o tempo” (Hartog, 2014, p. 16), e no caso de Benjamin, o tempo histórico se dobra
sobre o tempo sagrado, produzindo uma forma de atualização perpétua da memória. O texto de
Benjamin inscreve-se, portanto, num regime de historicidade que privilegia a repetição ritual e
a rememoração como modos de presença do passado, alinhando-se ao que Hartog identificaria
como um tempo de espelhos, em que o futuro não é horizonte de expectativa, mas reafirmação
de um passado sagrado.
Dessa forma, o Itinerário se configura como uma peça historiográfica de valor excepcional: ao
mesmo tempo em que nos fornece um panorama das comunidades judaicas medievais, ele
revela uma lógica de construção do tempo e do sentido alheia à historiografia moderna.
Benjamin escreve como quem reza: cada nome é uma invocação, cada deslocamento é um gesto
de reconstrução simbólica de um mundo em ruínas. O historiador, aqui, não apenas observa;
ele participa de uma tradição, reativa imagens fundadoras, reencena o passado e assim edifica
a memória coletiva como forma de sobrevivência. O gesto final do viajante, portanto, não é
apenas o de quem observa o mundo, mas o de quem o recria simbolicamente. O Itinerário não
se encerra em uma chegada; ele permanece em movimento, como o próprio povo que busca
representar. A escrita é sua morada móvel, seu templo portátil. Tal interpretação segue os
critérios de plausibilidade narrativa e realismo mitigado, nos termos de Estevão de Rezende
Martins, privilegiando a análise do sentido histórico mobilizado pela forma textual. Ler
Benjamin de Tudela, nesse sentido, é acompanhar uma peregrinação intelectual que transforma
o ato de narrar em liturgia e o deslocamento em conhecimento histórico.
Práticas mnemônicas judaicas e cristãs na Idade Média
A constituição da memória na Idade Média é inseparável dos regimes de temporalidade e das
estruturas simbólicas que organizam o imaginário coletivo. Tanto no universo cristão quanto
no judaico, a memória desempenha um papel fundamental na construção identitária, sendo
mobilizada por práticas textuais, rituais e performativas que visam a produzir continuidade e
sentido frente à instabilidade histórica. No entanto, apesar de compartilharem certos
dispositivos mnemônicos, como o uso de genealogias, exempla e narrativas sagradas, as duas
tradições se diferenciam radicalmente quanto à sua relação com o tempo, com os espaços de
rememoração e com os dispositivos materiais que sustentam suas memórias coletivas.
No Ocidente cristão, conforme mostra Frances A. Yates em seu clássico estudo sobre a arte da
memória, os sistemas mnemônicos foram profundamente influenciados pela tradição retórica
greco-romana, reelaborada no interior da escolástica medieval. A fixação da memória baseava-
se em estruturas arquitetônicas mentais (os loci) e em imagens vivas que, organizadas em ordem
lógica e visual, permitiam a recuperação de conteúdos discursivos. Tais práticas não apenas
influenciaram os métodos pedagógicos e teológicos, mas também contribuíram para a
monumentalização da memória através de catedrais, vitrais, relicários e hagiografias,
consolidando uma cultura visual e espacial da lembrança.
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No judaísmo diaspórico, por outro lado, a relação com a memória seguiu caminhos distintos,
em parte devido à condição de exílio, à ausência de um centro sagrado reconstruído após a
destruição do Segundo Templo e à interdição das imagens no culto. Em vez de monumentos
materiais, prevaleceu o uso intensivo da tradição oral e textual como meio de transmissão da
memória. A Torá, o Talmude e os comentários rabínicos funcionaram como arquivos vivos,
continuamente reinterpretados e ritualizados por meio da leitura litúrgica e das práticas
cotidianas. Como destaca Gabrielle Spiegel, trata-se de uma memória que se realiza na palavra
e no gesto, e não na pedra; uma memória performativa, corporificada na repetição ritual e na
reencenação simbólica de eventos fundadores, como o Êxodo ou a destruição de Jerusalém.
Essa distinção entre a “memória monumental” cristã e a “memória textual” judaica é essencial
para compreender os diferentes regimes de historicidade que ambas as culturas desenvolveram.
Enquanto o cristianismo medieval operava sob um horizonte escatológico que orientava a
história em direção à parusia e ao juízo final, o judaísmo mantinha um regime de espera
messiânica suspensa, em que a redenção era desejada, mas não datável. Como argumenta
François Hartog, esses diferentes “regimes de historicidade” moldam não apenas as práticas
historiográficas, mas também as formas de inscrever e reinscrever o passado no presente. O
tempo cristão é linear, redentivo; o tempo judaico, cíclico, ritual, marcado pela repetição e pela
ausência do Templo como vazio simbólico a ser preenchido pela memória.
Essa diferença se expressa também nos espaços mnemônicos. Enquanto os cristãos puderam
instituir uma geografia sagrada marcada por peregrinações, sepulcros e relíquias, os judeus
diaspóricos investiram na constituição de comunidades-texto, em que a coesão era garantida
pela fidelidade ao estudo e à lei. Em sua passagem por Bagdá, Benjamin escreve que: cerca
de quarenta mil judeus e eles vivem em segurança, prosperidade e honra sob o grande califa; e
entre eles grandes bios, os chefes das academias empenhados no estudo da lei. Nessa
cidade existem dez academias (Benjamin de Tudela, p.97). Andreas Huyssen observa que a
memória moderna, ao romper com as tradições orgânicas do passado, passou a buscar nos
monumentos uma compensação pela fragilidade da experiência. No entanto, ele também alerta
para os riscos da sobrecarga memorialística, que transforma a lembrança em culto à ausência.
O judaísmo medieval parece antecipar essa tensão ao articular uma forma de lembrar que é ao
mesmo tempo resistência e expectativa, ausência e promessa.
A comparação entre as práticas cristãs e judaicas de memória revela não apenas contrastes
religiosos, mas diferentes concepções de espaço e tempo. Enquanto o cristianismo medieval
constrói uma geografia sagrada marcada pela presença túmulos, relíquias, peregrinações
, o judaísmo elabora uma topologia da ausência, na qual o centro está em todo lugar e em lugar
nenhum. Essa dinâmica pode ser pensada à luz da noção de não-lugar proposta por Marc Augé:
espaços de trânsito e deslocamento que, embora destituídos de monumentalidade, são
carregados de sentido simbólico. A sinagoga da diáspora, o cemitério, o livro e a própria estrada
tornam-se, para Benjamin, “não-lugares da memória” pontos móveis de reconexão entre um
passado sagrado e um presente disperso.Michel de Certeau oferece uma leitura particularmente
fértil para compreender essa lógica. Para ele, o caminhar é uma forma de escrever no espaço, e
cada deslocamento cria uma narrativa territorial. Benjamin de Tudela, ao registrar suas rotas,
transforma o ato de viajar em escrita e o percurso em texto. O mapa que emerge de seu relato
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é, assim, uma coreografia mnemônica: os passos do viajante são frases de uma oração que se
inscreve sobre o mundo.
Neste ponto, a abordagem metodológica de Estevão de Rezende Martins oferece ferramentas
cruciais para compreender o estatuto dessas práticas mnemônicas. Ao propor que a história deve
ser pensada como “conhecimento dialógico” (Martins, 2015, p. 5), ele rompe com uma
concepção documentalista da fonte, chamando atenção para o fato de que os registros históricos
não apenas informam, mas também produzem sentidos e expectativas. Isso é particularmente
evidente nas práticas judaicas de memória, onde a repetição ritual e a leitura textual não são
meras recordações do passado, mas “formas de reconstrução e transmissão de sentidos em
contextos mutantes” (p. 16). A memória, aqui, não é passiva é constitutiva do presente e
antecipadora do futuro.
Nesse contexto, o Itinerário de Benjamin de Tudela o apenas representa comunidades
judaicas espalhadas no espaço; ele também reinscreve um corpo simbólico fragmentado e
reafirma um pertencimento transnacional sustentado pelo texto. Como afirma Martins, “a
narrativa histórica não apenas registra o que aconteceu, mas estrutura formas possíveis de
compreender e agir sobre o mundo” (p. 10). O texto de Benjamin é, portanto, uma intervenção
na tradição: ele confirma, articula e reativa uma rede simbólica cuja continuidade depende
justamente da sua atualização narrativa. A ausência de monumentos materiais é compensada
por uma textualidade ritualizada, em que cada nome, cada número, cada referência remete a um
tempo cumulativo e denso de memória.
Benjamin de Tudela é, nesse sentido, exemplar. Sua escrita não apenas registra comunidades e
territórios judaicos, mas os reinscreve num mapa simbólico que resiste à desintegração. Ao
descrever sinagogas, escolas, túmulos de sábios e mártires, ele não apenas informa: ele
performa a memória. Cada nome mencionado reativa uma genealogia; cada espaço visitado
torna-se um elo na cadeia do pertencimento. Seu Itinerário é, assim, um texto de luto e de
esperança, de rememoração e de reinscrição identitária. Diferente da monumentalidade cristã,
sua obra aposta na portabilidade da memória: uma memória que cabe na mochila do viajante,
que se move com o corpo e com a letra, e que se reconstrói a cada leitura e a cada novo exílio.
Do ponto de vista historiográfico, a análise das práticas mnemônicas judaicas e cristãs permite
repensar o próprio conceito de fonte. Estevão de Rezende Martins propõe que o documento
histórico deve ser compreendido como “forma de construção e disputa de sentidos sobre o
passado”. Seguindo essa orientação, o Itinerário não é um repositório neutro de informações,
mas uma intervenção simbólica em uma tradição viva. Benjamin atua como mediador entre o
vivido e o lembrado, reordenando o passado segundo as exigências do presente. Essa dimensão
ativa da memória aproxima o texto daquilo que Andreas Huyssen identifica como “política da
lembrança”: um modo de resistir ao esquecimento e de afirmar identidades ameaçadas. No
contexto da diáspora, a memória não é um luxo, mas uma necessidade ontológica. Essa leitura
decorre da abordagem histórico-hermenêutica, em que o documento é compreendido como
construção ativa de inteligibilidade, e não como espelho da realidade. Ela sustenta o
pertencimento quando o território é perdido, e assegura a continuidade quando o tempo
histórico se fragmenta. Ao mesmo tempo, a comparação com o cristianismo permite
compreender como diferentes culturas medievais negociaram suas temporalidades. François
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Hartog observa que o cristianismo opera sob um regime de historicidade escatológico, orientado
pela expectativa da parusia e pelo sentido linear do tempo. Já o judaísmo se estrutura a partir
de um regime litúrgico, em que o tempo se dobra sobre si mesmo e o futuro é promessa, não
projeto. O primeiro projeta o fim dos tempos; o segundo celebra o eterno retorno da Aliança.
Essa diferença não impede, contudo, a existência de zonas de contato e hibridização. Benjamin
de Tudela testemunha essa convivência de regimes de memória: atravessa espaços cristãos,
islâmicos e judaicos, observa seus modos de culto, seus monumentos e seus livros. Sua escrita,
nesse sentido, é também um exercício comparativo. Ao registrar o mundo, ele traduz e
interpreta as formas diversas de lembrar e de dar sentido ao tempo. A leitura do Itinerário sob
essa perspectiva global permite reconhecer que a memória medieval não era estática nem
isolada. Circulava com os homens, os objetos e os textos. Como observa Sebastian Conrad,
uma História Global deve “investigar as formas de conexão e tradução que estruturam o
passado” (Conrad, 2017, p. 86). Benjamin de Tudela antecipa essa sensibilidade ao tecer uma
rede simbólica que liga Bagdá a Alexandria, Roma a Jerusalém, Córdoba a Damasco. Sua
narrativa é, antes de tudo, uma cartografia das memórias conectadas.
Por isso, o Itinerário pode ser entendido como uma resposta à fragilidade do tempo histórico e
à dispersão espacial. Entre a monumentalidade cristã e a textualidade judaica, ele constrói um
terceiro caminho: uma memória portátil, movediça, inscrita na linguagem e sustentada pela
na permanência. Ao descrever sinagogas, túmulos e escolas, Benjamin não apenas informa; ele
reinscreve. Seu texto é, como diria Ricoeur, um “ato de refiguração” a transformação do
vivido em narrado, do fragmento em totalidade simbólica. Assim, as práticas mnemônicas
judaicas e cristãs na Idade Média, quando vistas em diálogo, não apenas revelam diferentes
formas de lembrar, mas também distintas epistemologias da história. Ambas se organizam em
torno da mediação entre ausência e presença, mas o fazem por caminhos opostos: o cristianismo
monumentaliza, o judaísmo ritualiza. Benjamin de Tudela, ao circular entre essas tradições, as
faz conversar e, ao fazê-lo, inaugura uma forma de historiografia que é, ao mesmo tempo,
devocional e global.
Imaginário e construção de sentido no texto de Benjamin de Tudela
A obra de Benjamin de Tudela, lida sob o prisma das práticas mnemônicas e da organização
simbólica do tempo, revela também uma dimensão fundamental: a do imaginário como
operador central na construção de sentido. O Itinerário não se limita a descrever o mundo
conhecido ou a testemunhar a presença judaica em diferentes regiões; ele fabrica um espaço
simbólico em que o passado, o presente e o messiânico se entrelaçam. A geografia, nesse
contexto, não é apenas um dado empírico é, sobretudo, uma topologia do pertencimento, na
qual cada lugar carrega não apenas uma função social, mas um valor de significação ritual,
histórico e escatológico.
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O conceito de imaginário histórico, tal como mobilizado por Paul Ricoeur e aprofundado por
autores como Jacques Le Goff, permite compreender essa camada profunda do texto como um
campo estruturado de imagens, símbolos e expectativas que moldam o modo como os sujeitos
interpretam a realidade e nela se situam. O imaginário judaico medieval, forjado na experiência
da diáspora, organiza-se em torno de polos como Jerusalém, o Templo, o Êxodo e a promessa
de redenção. Ao descrever Hebron, o viajante afirma: ali se acha a grande Igreja denominada
santo Abram, e este era um sítio judaico de culto religioso no tempo do domínio maometano,
mas os gentios erigiram seis tumas. Chamadas de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacob e Lea,
respectivamente” (Benjamin de Tudela, p.80-81). Benjamin mobiliza esse repertório de
maneira sofisticada, inscrevendo sua trajetória num plano que transcende o deslocamento
físico: seu caminho é também uma travessia mitopoética, um retorno simbólico às origens e
uma antecipação do fim.
Gabrielle Spiegel, ao tratar da performatividade da escrita medieval, sublinha que a produção
historiográfica desse período está frequentemente enraizada em estruturas de sentido que
excedem a lógica narrativa moderna. A linguagem histórica funciona, assim, como ritual textual
que atualiza modelos exemplares. No caso do Itinerário, Benjamin não apenas rememora os
lugares santos ou os grandes sábios do passado: ele os reinsere num presente que ainda os
necessita. Jerusalém, mesmo devastada, continua sendo o centro do mundo simbólico;
Babilônia, mesmo em ruínas, ainda ressoa como memória do exílio e da profecia.
Essa persistência de imagens e lugares como estruturas de sentido ativa uma forma específica
de temporalidade aquela que François Hartog define como regime de historicidade litúrgico
ou tradicional. Diferente do tempo linear do progresso ou do presenteísmo contemporâneo, esse
regime organiza-se em torno da repetição, da continuidade ritual e da fidelidade à tradição. O
imaginário judaico de Benjamin de Tudela opera exatamente nesse registro: ele constrói um
tempo em que os mortos estão vivos, os ausentes ainda falam e os lugares perdidos continuam
ativos na consciência coletiva. É um tempo denso, carregado de ecos e de ausências que exigem
reinscrição constante.
Ao inscrever essas imagens num texto, Benjamin não apenas comunica, mas performa sentidos.
Como propõe Estevão de Rezende Martins, a narrativa histórica, sobretudo em contextos como
o medieval, deve ser lida como construção ativa de inteligibilidade, e não como simples reflexo
do real. Para o autor, "não se trata de descobrir o real escondido por trás das palavras, mas de
compreender o modo pelo qual os discursos constroem sentidos que se pretendem verdadeiros"
(Martins, 2015, p. 10). A operação historiográfica, assim, participa da constituição dos vínculos
sociais, pois "não basta que algo seja vivido ou lembrado: é preciso que se torne compreensível
e transmissível" (p. 16). O texto de Benjamin cumpre precisamente essa função: transforma
experiências fragmentadas em um mapa inteligível de pertencimento e esperança.
Essa lógica do retorno simbólico, no entanto, não deve ser confundida com simples nostalgia
ou com um apego conservador à tradição. Como aponta Andreas Huyssen, o imaginário não é
apenas uma projeção do passado sobre o presente, mas também um campo de disputa por
significações futuras. Em contextos de despossessão e deslocamento como o vivido pelas
comunidades judaicas na Idade Média , o imaginário atua como reserva simbólica de
resistência e reinvenção. Ao reativar figuras e espaços da tradição, Benjamin não está apenas
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conservando uma memória: ele está oferecendo um horizonte de sentido, uma gramática
possível para sobreviver à descontinuidade.
Esse gesto é ainda mais notável quando observamos a multiplicidade de escalas com que
Benjamin articula seu relato. Ele atravessa espaços locais e impérios, descreve desde pequenas
comunidades até grandes centros urbanos, conecta o cotidiano dos judeus às dinâmicas globais
do comércio e da peregrinação. Como indicam Sebastian Conrad e Marcelo Cândido da Silva,
pensar historicamente em escala global não significa apenas mapear interações entre culturas,
mas também reconhecer as diferentes formas de inscrição do tempo e do sentido que coexistem
e se entrelaçam. O Itinerário, nesse aspecto, antecipa uma história “global antes da
globalização”, ao construir um mundo judaico conectado, transregional e simbolicamente
integrado por uma tradição comum.
A potência do imaginário no texto de Benjamin de Tudela reside, portanto, em sua capacidade
de articular memória, identidade e desejo de futuro. Ele narra o mundo como quem o reconstrói:
cada nome, cada lugar e cada prática religiosa descrita carrega o peso de uma ausência e a
promessa de uma permanência. Seu olhar é ao mesmo tempo testemunhal e fabulatorial ele
e sonha, registra e reconfigura. Assim, a análise privilegia o papel do imaginário como
operador epistemológico, em consonância com a proposta de Martins de compreender a fonte
como instância produtora de sentidos históricos. É essa ambivalência que confere ao Itinerário
sua densidade histórica e sua força simbólica: como texto, ele é menos uma janela para o
passado do que uma arquitetura de sobrevivência uma cartografia imaginária capaz de
sustentar um povo em constante travessia.
Considerações finais
A leitura do Itinerário de Benjamin de Tudela, à luz das contribuições da teoria da história, dos
estudos da memória e da História Global, revela uma obra de notável complexidade e potência
interpretativa. O texto, que à primeira vista se apresenta como um simples relato de viagem,
adquire espessura epistemológica quando reconhecido como artefato de memória ritualizada e
como exercício de reinscrição identitária. Benjamin de Tudela, o viajante, é também um
historiador de sua própria experiência, e seu itinerário converte-se em forma de pensar o tempo
e a sobrevivência. Longe de se enquadrar nas categorias modernas de relato factual ou crônica
empírica, o Itinerário manifesta uma concepção de história que se organiza pela rememoração,
pela repetição e pela liturgia. A narrativa de Benjamin encarna o que François Hartog
denominou “regime de historicidade tradicional” um modo de articulação temporal em que
o passado exerce primazia normativa e o futuro se apresenta como promessa escatológica. Essa
estrutura do tempo, enraizada na experiência da diáspora e na expectativa messiânica, substitui
o ideal moderno de progresso por uma temporalidade de permanência. A história, nesse modelo,
não é fluxo, mas retorno; não é ruptura, mas fidelidade.
Esse modo de ordenar o tempo implica também uma forma singular de escrever a história.
Gabrielle Spiegel e Estevão de Rezende Martins convergem ao apontar que, na escrita
medieval, a narrativa não tem função apenas representativa, mas performativa. A palavra não
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descreve o mundo ela o reconstitui. Benjamin escreve como quem reza: suas listas, suas
descrições e suas repetições constituem gestos de reinscrição simbólica, em que cada nome
recuperado, cada cidade recordada, reativa uma genealogia e reinstaura o elo com o passado. A
história torna-se, assim, um rito de continuidade. Nessa perspectiva, o Itinerário de Benjamin
de Tudela se insere em uma tradição historiográfica que desafia as categorias modernas de
objetividade e linearidade. A obra opera segundo o princípio do “realismo mitigado” (Martins,
2015), reconhecendo a tensão entre o vivido e o narrado, entre a memória e o documento, e
fazendo da narrativa um instrumento de construção de sentido. O texto não pretende oferecer
uma representação totalizante do mundo medieval, mas organizar um conjunto de fragmentos
em torno de uma lógica simbólica: a da dispersão e da permanência.
A pertinência contemporânea dessa leitura se amplia quando aproximamos Benjamin de Tudela
das discussões promovidas pela História Global. Como propõe Sebastian Conrad, pensar
globalmente não significa apenas abarcar múltiplas escalas geográficas, mas compreender as
formas pelas quais o tempo e o espaço se articulam em contextos interconectados. O Itinerário
antecipa, com séculos de distância, essa sensibilidade: ao descrever as comunidades judaicas
da Península Ibérica à Mesopotâmia, o viajante cria uma rede de vínculos simbólicos e culturais
que transcende fronteiras políticas e religiosas. Seu olhar é diaspórico e cosmopolita não
pela abstração universalista, mas pela experiência concreta de viver entre mundos. Marcelo
Cândido da Silva denomina essa perspectiva de “história global antes da globalização”, isto é,
a consciência de uma conectividade que precede o capitalismo mundial e os sistemas coloniais
modernos. Benjamin, como figura histórica, encarna esse limiar: ele viaja por rotas comerciais,
mas também por rotas espirituais; observa os mercados e as sinagogas, os impérios e as ruínas;
narra o mundo como espaço de interdependência e tradução. Sua escrita realiza, portanto, uma
operação de ntese entre o testemunho e o imaginário, entre a empiria e o mito operação
que a História Global contemporânea busca recuperar, agora sob outra chave epistemológica.
Essa dimensão de mediação é particularmente relevante no debate atual sobre descolonização
do conhecimento histórico. O Itinerário nos obriga a repensar os parâmetros eurocêntricos de
temporalidade e de racionalidade. O tempo de Benjamin não é o tempo do progresso; sua
racionalidade não é a do cálculo ou da empiria pura, mas a da esperança e da repetição. Nesse
sentido, o texto antecipa, em sua própria forma, um gesto epistemológico que desafia a
modernidade ocidental: ele propõe uma história sem Estado, sem império e sem centro uma
história escrita a partir da margem, do trânsito e da memória. Ao lado de autores como Ricoeur,
Hartog, Huyssen e Rüsen, é possível compreender que o valor da obra de Benjamin de Tudela
não reside apenas no conteúdo empírico que ela oferece sobre o século XII, mas na estrutura de
pensamento histórico que ela manifesta. Sua narrativa nos recorda que a história não é
monopólio da modernidade: formas pré-modernas e não ocidentais de pensar o tempo, a
identidade e a continuidade. A escrita judaica medieval, ao articular memória e rito, apresenta
uma alternativa epistemológica à história linear uma história que nasce do luto, da dispersão
e da esperança.
O imaginário, nesse contexto, cumpre papel decisivo. Conforme Ricoeur, o imaginário não é
fuga, mas mediação o espaço onde o passado e o possível se encontram. Benjamin mobiliza
o imaginário para reconstruir o mundo: ele sonha Jerusalém enquanto descreve Bagdá, e em
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cada cidade uma centelha do Templo. Essa operação de transfiguração é, também, uma
forma de resistência simbólica. Diante da ausência material, o imaginário torna-se abrigo. Do
ponto de vista da teoria da história, o Itinerário oferece um exemplo notável de como o discurso
histórico pode funcionar simultaneamente como conhecimento e como rito. Ele realiza, no
século XII, aquilo que Jörn Rüsen descreve como o núcleo da consciência histórica: a
capacidade de dar sentido ao tempo. Mas Benjamin o faz não por meio da análise causal ou da
cronologia, e sim pela reiteração ritual e pela na continuidade. Sua escrita é memória que
pensa um testemunho do poder intelectual e espiritual da rememoração.
Em tempos marcados pela fragmentação da experiência, pela crise da historicidade e pela
hipertrofia do presente, revisitar Benjamin de Tudela adquire um sentido renovado. O viajante
medieval nos ensina que lembrar não é olhar para trás, mas reconstruir o caminho; que a
história, antes de ser ciência do passado, é ética da permanência; e que a escrita, quando
impregnada de rito e de imaginação, pode tornar-se um abrigo para o humano em meio às ruínas
do tempo. Assim, a obra de Benjamin de Tudela deve ser lida não apenas como documento do
judaísmo medieval, mas como uma proposta epistemológica: uma história construída a partir
da vulnerabilidade, uma memória sem monumentos, um imaginário que substitui a ausência
por presença simbólica. Ao articular tradição e deslocamento, o Itinerário oferece uma lição
sobre o poder transformador da escrita histórica uma lição que, longe de pertencer ao
passado, ainda interroga o presente sobre o sentido da história, da identidade e da própria
humanidade.
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Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Global da Universidade
Federal de Santa Catarina, com bolsa CAPES (2024); Mestre em História pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, com bolsa CAPES (2023); e
com período sanduíche em Universidad de Chile, como bolsista da Asociación de
Universidades Grupo Montevideo (2022). Membro do Grupo Sacralidades Medievais; Membro
do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais MERIDIANUM UFSC/CNPq; Membro do
Relicario: Red de Investigación sobre el Arte y la Historia de las Reliquias Cristianas Ibéricas;
Licenciada em História pela Escola de Formação de Professores e Humanidades da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás (2020).