A circulação de objetos religiosos no cristianismo medieval não pode ser compreendida apenas
como um fenômeno devocional. As relíquias, os ícones e os objetos litúrgicos integravam um
sistema mais amplo de trocas simbólicas, no qual o valor não se reduzia ao econômico, mas se
manifestava em dimensões espirituais, políticas e afetivas. Tal sistema aproxima-se, sob certos
aspectos, da lógica da dádiva descrita por Marcel Mauss em Essai sur le don (1925): o objeto
oferecido ou recebido nunca é neutro, pois carrega consigo a presença e o poder de quem o
doa. Dar, receber e retribuir tornam-se, assim, gestos que produzem vínculos duradouros,
estabelecendo alianças e hierarquias que se projetam inclusive sobre a relação entre o humano
e o divino. É neste sentido que a ideia de relíquia enquanto pignora sacra, ou, na formulação
de Guiberto de Nogent (c. 1055–1125), pigneribus sanctorum, ganha significado: as relíquias
são “garantias” da presença e do poder sobrenatural, selando um pacto simbólico entre o santo,
seus devotos e a comunidade de fé.
Aplicada ao universo cristão, essa teoria permite compreender as relíquias como “presentes
sagrados” que circulam entre pessoas, comunidades e instituições, reforçando laços de
fidelidade e devoção. Quando uma relíquia é transferida de um local a outro, por doação,
intercâmbio diplomático ou furta sacra, o gesto não é apenas o de mover um fragmento santo,
mas o de redistribuir graça, poder e prestígio. Essa “economia do sagrado”, na expressão de
Peter Brown (1981), articula piedade e autoridade: possuir uma relíquia significava deter uma
parcela da santidade que ela materializava, mas também reivindicar domínio sobre o espaço e
a memória que a cercavam. Nesse sentido, o culto das relíquias foi um dos principais
mecanismos de construção da res publica christiana, pois criou redes de interdependência entre
o local e o universal, o político e o espiritual.
Patrick Geary (1986) demonstrou que os episódios de furta sacra (os roubos de relíquias entre
mosteiros e cidades) revelam uma lógica de circulação semelhante à da dádiva maussiana. O
ato de apropriação só é legítimo quando interpretado como inspirado pela vontade divina,
transformando o conflito em comunicação sagrada. Cada translatio, nesse sentido, é também
uma tradução simbólica: uma passagem de poder, uma reconfiguração das fronteiras da
santidade. A relíquia não é apenas objeto de culto, mas instrumento de mediação entre
comunidades que negociam sua relação com o transcendente.
A partir do final do século XX, os estudos sobre materialidade e agência dos objetos ampliaram
essa compreensão. Para Arjun Appadurai (1986), os objetos possuem “vida social”, movendo-
se entre diferentes “regimes de valor” e adquirindo novos significados conforme os contextos
de uso e apropriação. Alfred Gell (1998), por sua vez, propõe a noção de “agência artística”,
segundo a qual os objetos religiosos agem sobre o mundo social tanto quanto são moldados por
ele. As relíquias, por sua natureza liminar entre corpo e signo, matéria e espírito, são
exemplares dessa condição: nelas, a materialidade não é obstáculo à transcendência, mas seu
veículo. Elas transformam espaços, legitimam instituições e articulam comunidades em torno
de narrativas partilhadas.
A circulação das relíquias, portanto, é inseparável da circulação de discursos e de poder. Cada
translatio implica a reescrita de uma história, a redefinição de um centro de autoridade e a
reconfiguração das fronteiras entre o sagrado e o profano. Como observa Hans Belting (1990),