Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO
E SUAS MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
LA TRANSLATIO DE LO SAGRADO ENTRE CHIUSI Y PERUGIA: EL SANTO
ANELLO Y SUS MOVILIDADES EN LOS SIGLOS XV Y XVI
THE TRANSLATIO OF THE SACRED BETWEEN CHIUSI AND PERUGIA: THE
SANTO ANELLO AND ITS MOBILITIES IN THE FIFTEENTH AND SIXTEENTH
CENTURIES
Fernandes, F.
Universidade Federal de São Paulo
fabiano.fernandes@unifesp.br
Romualdo, W. S.
Universidade Federal de São Paulo
wemerson.romualdo@unifesp.br
Resumo
Este artigo analisa o Santo Anello, identificado pela tradição católica como o anel nupcial da
Virgem Maria, a partir de suas múltiplas mobilidades materiais, textuais e simbólicas entre os
séculos XV e XVI. O estudo propõe uma leitura metodológica que articula a teoria da dádiva
e os estudos sobre materialidade e circulação de relíquias, compreendendo o objeto como um
mediador de poder, e identidade. A análise das fontes evidencia como as narrativas
concorrentes em torno do roubo e da posse do anel, entre o frade Vinterio e as autoridades
locais, expressam uma disputa mais ampla por prestígio espiritual e inserção nas rotas de
peregrinação ligadas a Roma e Assis. Além das fontes textuais, as imagens demonstram o uso
iconográfico do anel como instrumento de legitimação territorial e devocional. Assim, o artigo
propõe compreender o Santo Agnello não apenas como relíquia, mas como ponto de
convergência entre narrativas, rituais e redes de poder no cristianismo medieval e moderno.
Palavras-chave: Relíquias, Mobilidade, Translatio, Chiusi, Perugia.
Resumen
Este artículo analiza el Santo Anello, identificado por la tradición católica como el anillo
nupcial de la Virgen María, desde sus múltiples movilidades materiales, textuales y simbólicas
entre los siglos XV y XVI. Se propone una lectura metodológica que articula la teoría del don
y los estudios sobre materialidad y circulación de reliquias, entendiendo el objeto como
mediador de poder, fe e identidad. El análisis de las fuentes revela cómo las narrativas rivales
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sobre el robo y la posesión del anillo, entre el fraile Vinterio y las autoridades locales, expresan
una disputa más amplia por prestigio espiritual e inserción en las rutas de peregrinación
vinculadas a Roma y Asís. Junto con los textos, las imágenes muestran el uso iconográfico del
anillo como instrumento de legitimación territorial y devocional. Así, el artículo propone
comprender el Santo Anello no sólo como reliquia, sino como punto de convergencia entre
narrativas, rituales y redes de poder en el cristianismo medieval y moderno.
Palabras clave: Reliquias, Movilidad, Translatio, Chiusi, Perugia.
Abstract
This article analyzes the Santo Anello, identified by Catholic tradition as the nuptial ring of the
Virgin Mary, through its multiple material, textual, and symbolic mobilities between the
fifteenth and sixteenth centuries. The study proposes a methodological approach that brings
together gift theory and scholarship on materiality and the circulation of relics, understanding
the object as a mediator of power, faith, and identity. The analysis of the sources shows how
competing narratives surrounding the theft and possession of the ringbetween the friar
Vinterio and local authoritiesexpress a broader dispute over spiritual prestige and inclusion
within pilgrimage routes connected to Rome and Assisi. In addition to textual sources, visual
materials demonstrate the iconographic use of the ring as an instrument of territorial and
devotional legitimation. Thus, the article proposes to understand the Santo Anello not merely
as a relic, but as a point of convergence between narratives, rituals, and networks of power in
medieval and early modern Christianity.
Keywords: Relics; Mobility; Translatio; Chiusi; Perugia.
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Introdução
A circulação de objetos sagrados constitui um fenômeno importante para compreendermos as
dinâmicas religiosas, culturais e políticas do cristianismo medieval. As relíquias, ao mesmo
tempo em que evocam a presença do sagrado como pignora sacra (penhor ou garantia sagrada),
participam de redes complexas de trocas simbólicas e materiais, por meio das transladações
(translatio), que atravessam fronteiras geográficas, sociais e religiosas. Longe de se
restringirem à dimensão devocional, estes objetos operam como instrumentos de mediação
entre poderes, como bens de prestígio e como marcadores de identidade coletiva. Tal
perspectiva, inspirada nos estudos sobre mobilidade e materialidade, também nas teorias da
dádiva e da reciprocidade (Mauss, 1925; Brown, 1981; Geary, 1986), permite compreender as
relíquias como objetos em trânsito, cujos deslocamentos constroem e reconfiguram sentidos,
vínculos e disputas.
Todavia, esses sentidos ao serem negociados envolvem conflitos que vão bem além do campo
que na atualidade denominamos por religioso. Em boa medida, as relíquias podem assumir a
condição social de presentes, agregando riqueza, prestígio e capital simbólico tanto para quem
doa quanto para quem recebe.
Os historiadores das sociedades antigas utilizam a teoria antropológica da troca de presentes
desde, pelo menos, o século XIX, em conjunto com as contribuições dos historiadores do
direito alemães. No entanto, é fundamental, desde já, definir com mais precisão como
compreendemos as relações de troca. Para além das relações de mercado e do tributo
compulsório, existe uma ampla gama de interações a ser explorada. O paradigma maussiano
constitui o ponto de partida (cf. Algazi, prefácio, 2003).
1. Nos permite focar a atenção na circulação de riquezas e serviços e seus papéis na formação
dos laços sociais.
2. Nos convida a focar nas mudanças das relações entre pessoas e coisas.
3. Propõe enfatizar as relações de reciprocidade e o estabelecimento de obrigações mútuas.
Contudo, é necessário ter cautela e evitar aplicação automática desse modelo de análise e
sobredeterminar a realidade que se deseja explorar, partindo do princípio de que as trocas
são necessariamente geradoras de reciprocidade. Nem sempre um dom gera automaticamente
um contra dom. Segundo Algazi (2003), mesmo quando os participantes concordam que
determinado ato é um presente, isso não implica automaticamente um consenso sobre em que
consiste esse presente, o que sua entrega acarreta ou que tipo de legitimação ele proporciona.
Em última instância, um presente pode ser entendido como um gesto puro e simples, sem
necessariamente implicar um compromisso de reciprocidade, um contra-dom. É preciso ter em
mente que o presente é, antes de tudo, um processo de constituição de sentido, por vezes,
resultado de conflitos e oriundo de uma negociação (Algazi, Groebner, Jussen, 2003). Esse
processo de negociação não é arbitrário: está vinculado a repertórios culturais que moldam as
interações, bem como a vocabulários específicos
Os presentes não são algo dado, entidades fixas, mas fruto de uma dinâmica construção social
de transações. De partida o sentido e a implicação das transações não são evidentes nem
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inerentes nos atos por si mesmos. O sentido não precisa ser explicitamente negociado, mas faz
parte de um diálogo nos campos simbólico, ritual e gestual (Algazi, Groebner, Jussen, 2003).
Nesse contexto, o Santo Anello ou Santo Anel, identificado pela tradição do catolicismo como
o anel de noivado da Virgem Maria, apresenta-se como um caso exemplar de como um objeto
pode condensar múltiplas camadas de significação. Sua trajetória, segundo as fontes
hagiográficas e cronísticas, estende-se de Jerusalém a Perúgia, passando por Roma e Chiusi
entre os séculos IX e XIX. O anel teria circulado entre mercadores judeus e cristãos, sido
ocultado em conventos, roubado em atos de furta sacra e, finalmente, elevado à condição de
relíquia insigne na Catedral de São Lourenço em Perugia. Cada etapa desse percurso, ou
poderíamos dizer translatio, reflete não apenas deslocamentos físicos, mas transformações
simbólicas e institucionais, em que se entrecruzam interesses devocionais, políticos e
econômicos.
A partir do século XIX, com as visões místicas de Ana Catarina Emmeric, o Santo Anello
ganhou nova centralidade na religiosidade popular, atraindo peregrinos, especialmente noivos
e recém-casados, e sendo incorporado às práticas litúrgicas locais. Mais do que uma simples
relíquia de culto, o anel tornou-se um elo entre passado e presente, uma peça que liga a tradição
bíblica à construção medieval e moderna do culto às relíquias.
Este artigo propõe, portanto, analisar o Santo Anello em duas perspectivas complementares.
Na primeira parte, serão discutidos os fundamentos teóricos sobre a circulação de objetos e as
relações de poder implicadas nas trocas de presentes e relíquias, considerando as intersecções
entre dom, sacralidade e autoridade. Na segunda parte, a análise se concentrará na trajetória
histórica e simbólica da relíquia, observando como seus deslocamentos e reinterpretações
textuais e imagéticas configuraram dinâmicas de mobilidade, apropriação e legitimação dentro
da cultura cristã medieval e moderna.
Mais do que questionar a autenticidade do objeto, o presente estudo propõe uma hipótese de
leitura: compreender o Santo Anello como um ponto de convergência entre práticas de troca,
devoção e poder, em que o sagrado se constrói na interseção entre movimento e memória. A
translatio, tanto material quanto discursiva, é aqui entendida como um processo dinâmico de
produção de sentido, no qual cada deslocamento, cada narrativa e cada rito reconfiguram o
estatuto simbólico da relíquia. O anel não é, portanto, apenas testemunho da fé, mas também
dispositivo de negociação entre esferas religiosas, sociais e políticas.
Esta proposta não busca oferecer uma resposta definitiva sobre a origem ou o significado
último do objeto, mas abrir um campo de reflexão sobre como as relíquias, enquanto objetos
em circulação, criam vínculos e tensões que ultrapassam o âmbito do religioso. Ao situar o
Santo Anello entre as teorias da dádiva, da mobilidade e da materialidade, pretende-se sugerir
caminhos possíveis para futuras investigações sobre a economia simbólica do sagrado e suas
transformações históricas. Trata-se, antes de tudo, de um exercício interpretativo: observar, no
itinerário de uma relíquia, os modos como o cristianismo medieval e moderno elaborou as
trocas entre o visível e o invisível, o poder e a graça, a posse e a doação.
A circulação das relíquias e a economia simbólica do sagrado
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A circulação de objetos religiosos no cristianismo medieval não pode ser compreendida apenas
como um fenômeno devocional. As relíquias, os ícones e os objetos litúrgicos integravam um
sistema mais amplo de trocas simbólicas, no qual o valor não se reduzia ao econômico, mas se
manifestava em dimensões espirituais, políticas e afetivas. Tal sistema aproxima-se, sob certos
aspectos, da lógica da dádiva descrita por Marcel Mauss em Essai sur le don (1925): o objeto
oferecido ou recebido nunca é neutro, pois carrega consigo a presença e o poder de quem o
doa. Dar, receber e retribuir tornam-se, assim, gestos que produzem vínculos duradouros,
estabelecendo alianças e hierarquias que se projetam inclusive sobre a relação entre o humano
e o divino. É neste sentido que a ideia de relíquia enquanto pignora sacra, ou, na formulação
de Guiberto de Nogent (c. 10551125), pigneribus sanctorum, ganha significado: as relíquias
são “garantias” da presença e do poder sobrenatural, selando um pacto simbólico entre o santo,
seus devotos e a comunidade de fé.
Aplicada ao universo cristão, essa teoria permite compreender as relíquias como “presentes
sagrados” que circulam entre pessoas, comunidades e instituições, reforçando laços de
fidelidade e devoção. Quando uma relíquia é transferida de um local a outro, por doação,
intercâmbio diplomático ou furta sacra, o gesto não é apenas o de mover um fragmento santo,
mas o de redistribuir graça, poder e prestígio. Essa “economia do sagrado”, na expressão de
Peter Brown (1981), articula piedade e autoridade: possuir uma relíquia significava deter uma
parcela da santidade que ela materializava, mas também reivindicar domínio sobre o espaço e
a memória que a cercavam. Nesse sentido, o culto das relíquias foi um dos principais
mecanismos de construção da res publica christiana, pois criou redes de interdependência entre
o local e o universal, o político e o espiritual.
Patrick Geary (1986) demonstrou que os episódios de furta sacra (os roubos de relíquias entre
mosteiros e cidades) revelam uma gica de circulação semelhante à da dádiva maussiana. O
ato de apropriação é legítimo quando interpretado como inspirado pela vontade divina,
transformando o conflito em comunicação sagrada. Cada translatio, nesse sentido, é também
uma tradução simbólica: uma passagem de poder, uma reconfiguração das fronteiras da
santidade. A relíquia não é apenas objeto de culto, mas instrumento de mediação entre
comunidades que negociam sua relação com o transcendente.
A partir do final do século XX, os estudos sobre materialidade e agência dos objetos ampliaram
essa compreensão. Para Arjun Appadurai (1986), os objetos possuem “vida social”, movendo-
se entre diferentes “regimes de valor” e adquirindo novos significados conforme os contextos
de uso e apropriação. Alfred Gell (1998), por sua vez, propõe a noção de “agência artística”,
segundo a qual os objetos religiosos agem sobre o mundo social tanto quanto são moldados por
ele. As relíquias, por sua natureza liminar entre corpo e signo, matéria e espírito, são
exemplares dessa condição: nelas, a materialidade não é obstáculo à transcendência, mas seu
veículo. Elas transformam espaços, legitimam instituições e articulam comunidades em torno
de narrativas partilhadas.
A circulação das relíquias, portanto, é inseparável da circulação de discursos e de poder. Cada
translatio implica a reescrita de uma história, a redefinição de um centro de autoridade e a
reconfiguração das fronteiras entre o sagrado e o profano. Como observa Hans Belting (1990),
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o valor do objeto devocional não está em sua imobilidade, mas em sua capacidade de ser visto,
tocado, movido e reinterpretado. A mobilidade é a própria condição de sua eficácia simbólica:
o movimento confirma a presença e, ao mesmo tempo, renova o significado.
Um ponto importante para o debate sobre as relíquias é vê-las como mediadoras de memória e
poder. De acordo com Tatsch e Nascimento (2022) e Nascimento (2018), as relíquias não são
apenas objetos de culto, mas estruturas simbólicas capazes de produzir espaço sagrado e
identidade coletiva. Segundo Nascimento, a presença física da relíquia consagra o lugar e o
transforma em centro de devoção e legitimidade, articulando as dimensões estética, política e
espiritual. Essa leitura reforça a ideia de que a circulação das relíquias não se limita ao trânsito
material, mas envolve a criação de territórios simbólicos, onde o sagrado é constantemente
reinscrito por meio de narrativas e rituais.
A reflexão sobre o tempo é fundamental para compreender as dinâmicas simbólicas que
envolvem a circulação das relíquias. Como observou Jacques Le Goff (1979), a Idade Média
foi marcada por uma tensão entre o tempo da Igreja e o tempo do mercador, entre o ritmo
cíclico da liturgia e o tempo linear da produção e do lucro. No entanto, como sugere Chris
Jones (2023), o tempo medieval não pode ser reduzido a uma oposição binária: ele constitui
um tecido complexo de ritmos coexistentes, o tempo litúrgico e festivo, o tempo da
peregrinação e o tempo da memória. As relíquias, ao circularem entre espaços e contextos
distintos, participam ativamente dessa pluralidade temporal, condensando em si o passado
sagrado e o reatualizando no presente por meio das cerimônias de translação e veneração. O
Santo Anello, nesse sentido, não apenas atravessa fronteiras geográficas, mas também reordena
o tempo devocional, inscrevendo a experiência do sagrado em um regime de temporalidade
que é, simultaneamente, histórico, ritual e comunitário.
Essas perspectivas permitem propor que o Santo Anello, identificado pela tradição como o anel
de noivado da Virgem Maria, seja analisado como um objeto em rede, atravessado por trocas,
apropriações e reinterpretações sucessivas. Sua trajetória, de Jerusalém a Perúgia, passando por
Roma e Chiusi, constitui um microcosmo das dinâmicas de dom, disputa e devoção que
caracterizam o cristianismo medieval e moderno. Mais do que um vestígio sagrado, o anel é
um dispositivo de circulação simbólica: um ponto em que o sagrado se move, e ao mover-se,
constrói história, memória e autoridade.
O Santo Anello: trajetórias, narrativas e disputas de sentido
A história do Santo Anello constitui um exemplo paradigmático de como um objeto sagrado
pode condensar múltiplas camadas de circulação, material, simbólica, textual e imagética, e
operar como mediador entre devoção, poder e memória. A trajetória do anel, desde suas
supostas origens em Jerusalém até sua fixação definitiva em Perúgia, revela as articulações
entre fé, comércio, dom e autoridade que moldaram a cultura cristã medieval e continuaram a
ressoar na modernidade.
Segundo a narrativa textual da Ystoria Sacri Anuli, provavelmente escrita em Perugia no século
XI, o Santo Anello teria sido conservado em Jerusalém desde o matrimônio da Virgem Maria
com São José, passando, em tempos incertos, às mãos de mercadores judeus que o venderam a
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cristãos na península Itálica. Essa passagem entre comunidades religiosas, de judeus a cristãos,
evidencia o papel do objeto como ponto de contato entre universos simbólicos distintos. A
transação não deve ser entendida como um simples ato comercial, mas como uma transferência
de poder e sacralidade, na qual o valor material do ouro cede lugar ao valor espiritual e
identitário que o objeto adquire ao mudar de mãos.
Contudo, é necessário esclarecer que a apropriação da referida relíquia se em meio a disputas
político-religiosas significativas, envolvendo duas cidades muito próximas geograficamente na
Itália central. Chiusi, localizada na região fronteiriça entre a Toscana e a Úmbria, possui
origens etruscas e tornou-se sede episcopal desde o século IV. Entre os séculos XI e XIII,
conservava certa relevância religiosa regional, ligada ao culto de Santa Mustiola e à presença
de antigas catacumbas cristãs, mas sua influência política declinou progressivamente com a
expansão dos domínios de Siena e Orvieto. Perugia, consolidou-se como uma das principais
cidades da Úmbria a partir do século XII, com um governo comunal autônomo, marcada pela
presença de ordens religiosas, universidade e confrarias. Foi sede episcopal desde o século V
e palco de intensas disputas eclesiásticas, tornando-se, a partir do século XIII, um importante
centro de articulação entre o papado e os poderes locais (Vigueur, 1994), além de um polo de
produção artística e teológica. Essa diferença de escala e influência política (Chiusi tendo sido
conquistada por Siena, em oposição a Perúgia que manteve sua autonomia) explica, em parte,
o contraste entre a devoção mais local de Chiusi e a ambição de Perugia em consolidar-se como
centro de peregrinação e autoridade espiritual.
A posição geográfica dessas cidades poderia privilegiar a sua inserção na geografia sagrada.
Ambas se situavam entre as duas importantes rotas de peregrinação da Itália central (Figura 1):
a Via Francigena, que ligava o norte da Europa a Roma e passava pelo vale de Chiana, e a Via
Amerina, que cruzava a Úmbria em direção à Roma. Essa localização fazia de Chiusi e Perugia
pontos de passagem ou de desvio para os peregrinos que buscavam as indulgências romanas
ou, mais tardiamente, visitavam a Porciúncula em Assis. A partir do século XIII, com o
florescimento do culto franciscano, essas rotas se tornaram ainda mais movimentadas,
conectando mosteiros, igrejas e relíquias em um vasto território devocional. A circulação de
pessoas, relíquias e imagens consolidava a região como um espaço de intensa mobilidade
religiosa, onde os objetos sagrados, como o Santo Anello, ganhavam novo sentido à medida
que se integravam a esse cenário de deslocamentos e trocas (Stopani, 1988).
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Figura 1 - Vias Francigena e Amerina
À direita a Via Francigena e à esquerda a Via Amerina. O marcador vermelho à esquerda
localiza Chiusi e à direita Perugia. Ambas as cidades facilmente poderiam inserir-se em um
desvio das rotas de peregrinação e se estabelecer como importantes centros devocionais. Roma
sendo o ponto ‘A’ de ambas as rotas. Fonte: Criação nossa Google Maps.
A disputa entre Chiusi e Perugia pela posse do Santo Anello deve ser compreendida também
nesse contexto de circulação e concorrência espiritual. A transladação da relíquia, em meados
do século XV, coincide com o esforço das cidades italianas em fortalecer sua identidade
religiosa e atrair peregrinos. Em Perugia, a instituição de uma festa litúrgica própria, celebrada
no início de agosto, contribuiu para inserir o culto do Santo Anello no calendário devocional
da região. Essa celebração aproximava-se da data do Perdão de Assis (Perdono d’Assisi) no
início de agosto, solenidade franciscana que atraía multidões de peregrinos. Essa coincidência
(criada) reforça a hipótese de que Perugia buscava integrar-se às rotas de peregrinação,
associando a relíquia mariana ao itinerário penitencial e às indulgências ligadas a São
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Francisco, em um esforço para ampliar seu prestígio religioso e simbólico frente às cidades
vizinhas.
A tradição de Chiusi afirma que o anel foi conservado durante séculos em um convento local,
até ser objeto de um episódio de furta sacra que o levou a Perúgia em meados do século XV.
O roubo, reinterpretado posteriormente como translatio miraculosa, foi legitimado por
narrativas que atribuíam à vontade divina o deslocamento do objeto, reconfigurando a
geografia do sagrado e reforçando o prestígio da nova sede custodial. Assim como em outros
casos analisados por Patrick Geary (1986), o conflito pela posse de uma relíquia implicava uma
disputa por legitimidade e visibilidade dentro da hierarquia eclesiástica e urbana. A relíquia
tornava-se, portanto, objeto de negociação simbólica, capaz de deslocar centros de poder e
redefinir os limites entre o sagrado e o político.
A disputa entre Chiusi e Perúgia não se deu apenas no plano narrativo, mas também no campo
das imagens. Desde o século XV, ambas as cidades desenvolveram repertórios iconográficos
distintos em torno do Santo Anello, convertendo o visível em instrumento de memória e
legitimação. Em Chiusi, as representações mais antigas, preservadas em afrescos e códices
locais, enfatizam o caráter custodial e monástico do anel, frequentemente situado em contextos
litúrgicos fechados, sob a guarda de monges ou figuras angelicais. A imagem reforça a ideia
de fidelidade e preservação: o anel é um depósito da fé, não um objeto em movimento. As
imagens que buscam construir a posse do Santo Anello a Chiusi ou a Perugia não se limitam a
ilustrar os eventos: elas atuam como agentes de legitimação.
No contexto perugino do século XV, a legitimação operada pelas imagens tinha uma dupla
função. Por um lado, reforçava a autoridade do bispo de Perúgia Iacopo Vagnucci
1
e da elite
política da comuna, que reivindicavam a custódia legítima da relíquia e tentavam se estabelecer
politicamente em relação à Siena. A oposição de Vagnucci era mais direta ao episcopado do
franciscano Gabriele Picoolomini, eleito bispo de Chiusi em 1463 e cuja família provavelmente
era muito influente em Siena. A proximidade do bispo de Perugia com papado desde Nicolau
V, passando por Calisto III, Pio II e Paulo II foi decisiva na disputa pela relíquia, o papa Sisto
IV o promoveu a camerlengo e este mesmo pontífice, confirmado por Inocêncio VIII
posteriormente e oficialmente, deu à posse da relíquia à cidade de Perugia, durante a disputa
(Caracciolo, 2005; Caracciolo 2008).
Por outro lado, essa legitimação conferia prestígio à própria comuna de Perugia, que utilizava
o Santo Anello como emblema cívico nas festas e procissões, por meio das irmandades e
confrarias. Assim, o visível servia como uma forma de confirmação pública do direito de posse,
uma legitimação simultaneamente religiosa e política, que convertia a imagem em instrumento
de afirmação urbana frente a Chiusi e às demais cidades da Úmbria, como Siena. Como
exemplo concreto, na festa da Descida do Anel (Calata del Santo Anello), cada uma das 14
chaves que fecham o baú do século XV em que a relíquia fica guardada, pertencem às
1
Pertencia a uma rica família de comerciantes da Toscana, que patrocinou a construção de muitas igrejas e
produções artísticas. Tendo estudado e Perugia e depois retornado à corte em Florença, recebeu influência de seu
tio cartuxo, Fra Niccolò Vagnucci, que era muito próximo ao cardeal que viria se tornar o Papa Nicolau V. Ver
Raffaelle Caracciolo, Giacomo Vagnuci, Dizionario Biografico degli Italiani (Istituto della Enciclopedia
Italiana).
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autoridades e/ou instituições eclesiásticas e civis, demonstrando que a posse da relíquia
importava (e poderíamos dizer, ainda importa) tanto à elite religiosa, quanto política de Perúgia
(Caracciolo, 2005; Caracciolo 2008).
Em Chiusi, a iconografia de Santa Mustiola apresenta a santa segurando o anel preso a uma
corrente, imagem que associa diretamente a relíquia ao seu túmulo e à tradição local,
reforçando a legitimidade da cidade como guardiã do objeto sagrado (Figura 2). em Perugia,
a partir do século XV, a iconografia passa a ser reformulada: o Santo Anello é transferido da
mão da mártir para a de São José, que o segura próximo ao peito, sinalizando o deslocamento
da relíquia e a redefinição do centro de culto (Figura 3). Por fim, gravuras e pinturas
posteriores, como a representação da Virgem Maria entregando o anel a São Lourenço e Santo
Hércules, padroeiros de Perugia, consolidam o triunfo visual da cidade sobre Chiusi (Figura
4). Nessa imagem, a entrega do anel se transforma em uma investidura celestial, legitimando a
posse da relíquia como um dom divino à catedral perugina. Assim, a disputao se deu apenas
em documentos e sermões, mas também nas imagens, que operaram como instrumentos de
afirmação política, teológica e territorial dentro da dinâmica devocional e das rotas de
peregrinação medievais.
Figura 2
Santa Mustiola, afresco do século XIV. Fonte: ILUOGHIDELSILENZIO.IT. Chiesa di Santa
Maria Assunta Mongiovino Vecchio di Panicale. Disponível em:
https://www.iluoghidelsilenzio.it/chiesa-di-santa-maria-assunta-mongiovino-vecchio-di-
panicale-pg/.
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Figura 3
Recorte da imagem de São José na Igreja de Santa Maria di Ancaelle. Afresco de Giovan
Battista Caporali, 1527. Fonte: Visit Perugia (2024). Disponível em:
https://www.visitaperugia.it/en/perugia-the-street-of-trasimeno/.
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Figura 4
Virgem com o Santo Anel e os Santos Herculano e Lourenço, padroeiros de Perugia. Carlo
Spiridione Mariotti, cerca de 1750. Perugia: Catedral de Perugia. Fonte: Wikimedia Commons.
“File: Madonna col Santo Anello e Santi Ercolano e Lorenzo Patroni di Perugia”. Disponível
em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Madonna_col_Santo_Anello_e_Santi_Ercolan
o_e_Lorenzo_Patroni_di_Perugia.jpg.
Para Hans Belting (1990), o valor da imagem sagrada está em sua “vida”, isto é, em sua
capacidade de tornar presente o invisível e de mobilizar o olhar devocional. Do mesmo modo,
David Freedberg (1989) lembra que as imagens religiosas não apenas representam, mas
provocam respostas corporais, emocionais e rituais. Assim, cada afresco, iluminura ou pintura
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do Santo Anello opera como um gesto performativo que reforça a posse espiritual e o poder
simbólico da cidade que o representa, a imagem, aqui, é também uma forma de disputa.
Em Chiusi, o culto estava tradicionalmente ligado ao mosteiro de Santa Mustiola e às
comunidades de frades franciscanos, que zelavam pela relíquia como parte de sua identidade
espiritual e econômica. em Perugia, o protagonismo coube ao clero catedralício e às
confrarias laicas vinculadas à Catedral de São Lourenço
2
, como a Confraternita del Santissimo
Sacramento, di San Giuseppe e del SantAnello. Esses grupos mobilizavam o culto tanto para
fortalecer a coesão devocional local quanto para garantir recursos provenientes de peregrinos
e doações. A disputa pelo anel, portanto, não opunha apenas duas cidades, mas refletia
interesses concorrentes entre clero regular e catedralício (secular), autoridades eclesiásticas e
civis, entre a economia do clerical e a política urbana comunal.
A iconografia produzida em Perúgia após o furta sacra assume um tom triunfal e processional.
As representações do anel, dos santos que o portavam e do casamento entre Maria e José,
especialmente na Catedral de São Lourenço e nas gravuras devocionais dos séculos XVI e
XVII, enfatizam a posse da relíquia à Chiusi. O anel aparece envolto em luz, sustentado por
anjos ou conduzido por clérigos e cidadãos, simbolizando a escolha sobrenatural de Perúgia
como nova guardiã da relíquia. Esse imaginário visual se tornou parte do patrimônio identitário
da cidade, inscrito tanto nas celebrações litúrgicas quanto nas festas cívicas.
Assim, enquanto Chiusi constrói uma iconografia da memória e da perda, marcada pela
saudade e pela ideia de usurpação injusta. Perúgia elabora uma iconografia da posse e da
eleição divina
3
. O confronto entre essas imagens revela o modo como a arte sacra participa da
disputa pelo sagrado: o visível se torna argumento teológico e político. O espaço pictórico
substitui o documento jurídico e a imagem, como lembra Hans Belting (1990), torna-se “prova
da presença”, uma forma de tornar o invisível tangível.
Com a chegada do Santo Anello a Perúgia, a relíquia foi gradualmente integrada às celebrações
cívico-religiosas da cidade. A partir do século XVI, consolidou-se como símbolo de identidade
urbana e espiritual. Casais recém-casados peregrinavam à Catedral de São Lourenço para
venerá-lo, transformando o anel em símbolo da aliança conjugal e da graça matrimonial. A
devoção articulava o plano íntimo e o público, o doméstico e o litúrgico, numa ritualização que
reforçava a união entre o humano e o divino.
2
A Catedral de São Lourenço começou sua construção no século XIV e foi concluída no século XV. Utilizando
antigas fundações de uma igreja românica anterior, o templo está localizado ao lado do Palazzo dei Priori,
constituindo juntos o centro espiritual e político de Perugia. No interior, destacam-se a Cappella del Santo Anello,
erigida no século XV para abrigar a relíquia mariana, e no exterior púlpito medieval, tradicionalmente associado
às pregações de São Bernardino. A fachada inacabada, voltada para a Piazza IV Novembre, com elementos
artísticos diversos, testemunha o longo processo construtivo e a contínua adaptação do edifício às necessidades
do culto e da representação cívica.
3
É importante reconhecer que ambas as cidades possuíam dinâmicas sociais políticas e de poder muito próprias,
obviamente não se constituindo como um todo uníssono, possuindo seus próprios conflitos e tensões. No entanto,
nosso artigo privilegia a análise da mobilidade material e simbólica da relíquia, sem aprofundar as dinâmicas
específicas de cada cidade. Não estamos ignorando essa dimensão, no entanto o foco na disputa pela relíquia já
reflete parte dessa complexa dinâmica de poder.
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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O culo XIX marca um novo ciclo de mobilização simbólica. As visões místicas de Ana
Catarina Emmerich reacenderam o interesse pelo anel e revitalizaram a peregrinação a Perúgia.
Nesse contexto, a relíquia voltou a articular diferentes esferas de poder e devoção: a piedade
popular, a autoridade eclesiástica e a reafirmação do matrimônio cristão como instituição
sagrada. A sua presença no imaginário devocional moderno demonstra que o Santo Anello não
é apenas uma herança medieval, mas um objeto de longa duração simbólica, continuamente
reinterpretado conforme as sensibilidades religiosas e as necessidades culturais de cada época.
As fontes que sustentam essa trajetória, códices medievais, crônicas, livros de milagres e
iconografia devocional, formam um tecido intertextual e intervisual em que o anel é
constantemente reinscrito e ressignificado. Cada narrativa e cada imagem reformulam sua
função simbólica, seja como sinal de pureza mariana, relíquia nupcial ou emblema urbano. As
divergências entre as versões de Chiusi e Perúgia não são meras variações locais, mas
expressões de diferentes regimes de legitimidade e memória, em que a posse de um objeto
sagrado implica o poder de narrar e representar o milagre.
Assim, o Santo Anello exemplifica de modo singular as múltiplas dimensões de mobilidade
propostas neste estudo: mobilidade material (o trânsito físico da relíquia), mobilidade textual e
imagética (a multiplicação de narrativas e representações), e mobilidade simbólica (a
transformação constante de seus significados). Como presente e como poder, o anel articula
redes de pertencimento e devoção que conectam comunidades, instituições e imaginários
através dos séculos, constituindo um testemunho privilegiado da vitalidade das trocas sagradas
no cristianismo ocidental.
A análise dessas disputas narrativas e iconográficas conduz, portanto, ao exame direto das
fontes escritas que sustentam e perpetuam a memória do Santo Anello. Mais do que simples
registros devocionais, esses textos são agentes de construção simbólica, por meio dos quais o
anel adquire novos sentidos e legitimidades. Cada documento participa de uma negociação
entre o visível e o invisível, entre a tradição e o presente, convertendo o relato em gesto de
posse e interpretação. A seguir, serão apresentadas as principais fontes conhecidas sobre o
Santo Anello, com atenção especial às suas origens, versões e reescritas, de modo a evidenciar
como a palavra, assim como a imagem, atua na disputa pela definição do sagrado.
A análise iconográfica e narrativa pode evidenciar que o Santo Anello não apenas circulou
materialmente, mas também se deslocou por meio das palavras e das imagens que o
reinterpretaram. Cada tentativa de narrar sua origem e trajetória é, em si mesma, um ato de
posse simbólica. É nesse horizonte que se inscrevem as fontes escritas e visuais que
documentam, reformulam e disputam a memória do anel, não apenas como relíquia, mas como
signo de poder e de mediação entre comunidades.
Fontes e versões do Santo Anello: entre a invenção hagiográfica e a legitimação histórica
A tradição do Santo Anello desenvolveu-se ao longo de mais de mil anos, atravessando gêneros
textuais, linguagens e contextos devocionais diversos. Suas versões, desde o culo XI até o
XIX, combinam elementos históricos, hagiográficos e lendários, revelando tanto o interesse
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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pela materialidade da relíquia quanto as estratégias narrativas utilizadas para legitimar sua
veneração.
Nesse contexto, a escrita assume também uma função de poder. Como destaca Michel de
Certeau (2011), o ato de escrever sobre o sagrado não é apenas descritivo, mas instituinte: ele
fixa o milagre, ordena o espaço da fé e legitima as vozes autorizadas a narrá-lo. Cada crônica
ou registro hagiográfico sobre o Santo Anello deve ser entendida, portanto, como parte de uma
estratégia de autoridade, uma maneira de estabilizar a presença do objeto no discurso, ao
mesmo tempo em que se define quem pode falar em nome do sagrado.
A mais antiga narrativa conhecida sobre a origem do Santo Anello encontra-se no códice latino
Ystoria Sacri Anuli, conservado em Perugia e datado provavelmente do culo XI. Essa versão,
de autoria anônima, apresenta a estrutura típica das inventiones de relíquias: o relato do
“escondimento” do objeto desde os tempos apostólicos, sua redescoberta milagrosa e a
designação do local onde deveria ser venerado. O texto narra que um judeu romano,
comerciante de pedras preciosas, presenteou o ourives chiusino Ainerio com o anel de
casamento de Maria e José. Incrédulo, o ourives guardou o objeto, que mais tarde foi
identificado como sagrado por meio do milagre da ressurreição momentânea de seu filho,
episódio que confirmaria a autenticidade da relíquia e legitimaria sua conservação na igreja de
Santa Mustiola em Chiusi.
Essa narrativa situa os fatos no episcopado de Arialdo, bispo de Chiusi entre 998 e 1027, e
vincula o achado à época de Otão III, reforçando a legitimidade imperial e eclesiástica da
relíquia. A versão latina é escrita em um latim fluente e elegante, e segundo Crisóstomo
Trombelli (1765), que transcreveu o texto a partir de um manuscrito da Biblioteca Angelica de
Roma, o códice original incluía um prólogo ausente em outras versões, iniciado pelas palavras
Sicut pretiosarum rerum materies (Assim como a substância das coisas preciosas). Esse
prólogo, que discorria sobre o valor espiritual dos objetos preciosos, situava teologicamente o
relato no contexto da teologia das relíquias do século XI.
O texto latino foi conhecido sobretudo por meio de três vias principais. Pompeo Pellini, em
1664, publicou uma tradução vernacular da Ystoria Sacri Anuli no segundo volume da sua
Historia di Perugia. Essa edição é fundamental por adaptar o latim medieval ao vernáculo
italiano, preservando a estrutura narrativa original, mas com uma tonalidade mais cronística e
menos devocional. Crisóstomo Trombelli, em Mariae sanctissimae vita ac gesta (Bolonha,
1765), oferece uma edição crítica baseada em um códice da Biblioteca Angelica. Atribui o
manuscrito ao século XI e inclui o prólogo teológico ausente na versão perugina. Sua edição
reforça o caráter hagiográfico da lenda e situa o anel dentro da tradição dos miracula Mariae.
Adamo Rossi, erudito perugino do século XIX, publica em 1857 uma nova edição, cotejando
o texto de Trombelli com o exemplar perugino e eliminando o prólogo. Rossi também reelabora
a narrativa em um estilo parenético
4
, típico da pregação oitocentista, e propõe uma
interpretação alegórica segundo a qual a mártir Santa Mustiola teria sido a portadora do anel a
4
A arte de pregar e discursar por meio de sermões com o objetivo de exortar, instruir e aconselhar o público,
também podendo significar a compilação ou reunião de sermões e textos com ensinamentos morais.
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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Chiusi. Essa hipótese, inspirada na iconografia da santa, frequentemente representada
segurando uma corda com um anel, buscava integrar a tradição mariana à devoção local.
Apresentadas as versões das fontes, gostaríamos de destacar duas que constroem uma trajetória
inicial da relíquia de maneira diversa, ambas centradas na figura de Santa Mustiola, cuja
memória foi essencial para legitimar a presença da relíquia em Chiusi. A primeira, de caráter
erudito e editada por Adamo Rossi no século XIX, relata que Maria teria confiado o anel a São
João Evangelista, que o levou consigo até Roma. Perdido durante as perseguições imperiais, o
objeto teria passado ao tesouro de uma parente do imperador, Mustiola, sendo mais tarde
sepultado com ela e encontrado junto de suas relíquias.
A segunda narrativa, registrada no códice perugino Ystoria Sacri Anuli, apresenta uma versão
mais popular. Segundo o relato, um comerciante judeu de pedras preciosas teria oferecido o
anel da Virgem a um ourives de Chiusi, chamado Ainério, que o desprezou e o guardou sem
atenção. Anos depois, durante o funeral do filho, o jovem teria retornado brevemente à vida
para ordenar ao pai que tratasse o objeto com a devida veneração. Desde então, a relíquia teria
sido guardada na igreja de Santa Mustiola, tornando-se símbolo da fé local.
Essa associação entre o anel e Mustiola parece resultar de um esforço de legitimação
hagiográfica, empreendido no século XI pelos cônegos da igreja que levava seu nome. Inserir
o culto do Santo Anello em torno da santa permitia dar coerência à tradição e reforçar o
prestígio do santuário. Com o tempo, a imagem de Mustiola segurando o anel tornou-se parte
de sua iconografia devocional, consolidando a ligação entre a relíquia e a identidade religiosa
da cidade.
No século XV, contudo, a trajetória do anel sofreu uma reviravolta. Em 1420, a relíquia foi
trasladada para a igreja de São Francisco, de onde seria furtada em 1473 por Fra Vinterio. A
perda do anel foi um golpe profundo para Chiusi, tanto espiritual quanto econômico, pois
comprometia sua posição nas rotas de peregrinação que ligavam a Via Francigena à Via
Amerina. A tentativa de recuperar prestígio levou as autoridades locais, em 1474, a promover
a exumação das relíquias de Santa Mustiola, procurando reafirmar a cidade como centro de
devoção e resistência simbólica diante do novo protagonismo de Perugia, que passava então a
reivindicar a posse legítima do Santo Anello. Essas narrativas, ao circularem entre Chiusi e
Perugia, ultrapassam a dimensão meramente devocional: tornam-se também instrumentos de
disputa e reinterpretação, tanto no plano textual quanto no visual.
A tradição literária e devocional em torno do Santo Anello prolongou-se, entre os séculos XVII
e XIX, em uma série de publicações eruditas e apologéticas que procuraram fixar, legitimar ou
reinterpretar a história da relíquia. Entre elas, destacam-se as obras de Francesco Ciatti (1637)
Breve racconto dell’istoria del sacro Anello con cui fu sposata Maria Vergine; Stefano
Fantoni Castrucci (1673) Del pronubo anello della Vergine il quale si conserva in Perugia:
Istoria illustrata; Giuseppe Vincioli (1737) Del santo anello di Maria Vergine; Vincenzo
Cavallucci (1783) Istoria critica del sacro anello con cui fu da san Giosefo sposata Maria
Vergine, e che religiosamente si conserva nel duomo di Perugia; e Domenico Venti (1828)
Compendio storico riguardo il pronubo anello di Maria SS. che si conserva nella chiesa
cattedrale di Perugia; cada qual refletindo a sensibilidade religiosa e historiográfica de seu
tempo. Já no início do século XX, Enrico Ricci (1920) em “La leggenda di Santa Mustiola e il
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MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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furto del Santo Anello. Bollettino della Deputazione di Storia Patria per l’Umbria” retoma o
tema sob uma ótica histórica, relacionando-o à lenda de Santa Mustiola e ao conceito medieval
de furta sacra.
Conjuntamente, esses textos não apenas preservam a memória do anel, mas documentam a
transformação do discurso sobre o sagrado, da hagiografia à crítica erudita, e a continuidade
das disputas simbólicas entre Chiusi e Perúgia
As narrativas textuais se entrelaçam com eventos históricos documentados, como o furto da
relíquia em 1473 pelo frade agostiniano Wintherius Roberti de Mainz, que a levou de Chiusi
para Perugia. O episódio conhecido como a Guerra do Anel, gerou disputas políticas e
diplomáticas entre as duas cidades envolvendo o Papa Sisto IV e, posteriormente, Inocêncio
VIII que confirmou a posse perugina da relíquia em 1486. Esses acontecimentos intensificaram
a produção textual e iconográfica em torno do objeto, transformando-o em símbolo de
identidade cívica.
A Ystoria Sacri Anuli, impressa em compêndios de milagres marianos, fixou a versão em que
o anel permanecia em Chiusi, demonstrando que a lenda já era conhecida e difundida antes do
furto. A incorporação do relato em coleções de milagres e sua tradução para o vulgar indicam
que o culto ao anel havia ultrapassado o âmbito local, tornando-se parte do imaginário mariano
europeu.
A devoção ao Santo Anello foi reavivada no século XIX, em parte pelas visões místicas da
beata Ana Catarina Emmerich (1821), que descreveu em detalhes o anel: sua aparência,
material e local de custódia em uma igreja italiana. Embora não identificasse Perugia, suas
revelações foram lidas retrospectivamente como confirmações visionárias da relíquia,
reforçando o prestígio de seu culto. Paralelamente, estudiosos como Giacomo Bersotti
ofereceram versões em italiano moderno, de caráter devocional, suprimindo o aparato erudito
das edições anteriores e adaptando o texto à sensibilidade católica contemporânea.
As fontes que narram a trajetória do Santo Anello, não apenas registram um passado sagrado,
mas encenam e legitimam continuamente a sua presença. Cada nova versão, cada reelaboração
textual ou imagética, opera como um rito discursivo que reativa a relíquia e reinscreve seu
poder no presente da comunidade. Assim, as disputas narrativas entre Chiusi e Perugia não se
restringem ao campo da memória: elas se traduzem em gestos, procissões e cerimônias que
corporificam, no espaço e no tempo, a autoridade do relato. Essa sobreposição entre o texto e
o rito, entre o que se escreve e o que se celebra, revela que a circulação da relíquia não é apenas
material, mas também performativa. Passa-se, portanto, da palavra ao corpo, do manuscrito ao
movimento, do discurso ao rito, onde o conflito entre tradições se transforma em liturgia e o
dom em espetáculo da fé.
Os ritos religiosos, especialmente aqueles que envolvem relíquias, não são apenas expressões
de unidade e continuidade da fé. Eles emergem, com frequência, como produtos de dissensos,
tensões e reconfigurações culturais. A experiência ritual não é, portanto, o oposto do conflito,
mas uma forma de dar-lhe forma simbólica e de reinscrevê-lo em um horizonte de sentido.
Conforme observa Victor Turner (1969), o rito opera em um espaço liminar, entre a ordem e a
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A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
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crise, transformando o desequilíbrio social em comunhão performativa. Em vez de apagar o
conflito, o ritual o traduz, o dramatiza e o reconcilia simbolicamente.
No mundo medieval, as relíquias e suas transladações oferecem exemplos paradigmáticos
desse processo. A circulação de um corpo santo ou de um objeto venerado raramente se fazia
sem contendas: monges, bispos e cidades competiam pela posse, enquanto os fiéis
reinterpretavam cada deslocamento como um sinal da vontade divina. Como demonstrou
Patrick Geary (1978), os episódios de furta sacra não são apenas roubos, mas atos fundacionais,
seguidos de cerimônias que transformam o conflito em legitimidade. O novo possuidor não
nega o embate anterior, ele o ritualiza. A procissão que celebra a chegada de uma relíquia não
é uma simples festa devocional, mas o rito de pacificação de um desacordo, inscrito na memória
coletiva como milagre.
A trajetória do Santo Anello confirma esse padrão. O episódio de sua transferência de Chiusi
para Perúgia, narrado como furto, foi reinterpretado como translatio miraculosa, e essa
releitura tornou-se o núcleo de um rito cívico-religioso que ainda hoje reencena a apropriação
inicial. A procissão anual em honra do anel, acompanhada de bênçãos nupciais e nticos
marianos, celebra não apenas a relíquia, mas a própria vitória narrativa de Perúgia sobre Chiusi.
Trata-se, portanto, de um rito nascido do conflito, e que perpetua sua memória sob a forma de
devoção.
As fontes que tratam do episódio do furta sacra do Santo Anello permitem observar como cada
cidade o interpretou de acordo com seus próprios interesses simbólicos e institucionais. Um
relato proveniente de Chiusi descreve o roubo com elementos calamidade cósmica: enquanto
a relíquia esteve oculta com o ladrão, o sol jamais brilhou claramente [...] nem a lua
resplandeceu”, e a claridade retornou quando o frade foi preso. O fenômeno celeste atua,
nesse contexto, como sinal divino de desordem, quase uma lamentação, legitimando a leitura
teológica do acontecimento. Ao enfatizar o caráter prodigioso do episódio, este texto apresenta
a importância da relíquia para Chiusi e como o roubo feriu o vínculo entre a cidade e sua
relíquia tutelar.
Per venti giorni circa che il S. Anello stette occultato presso il ladro, il
sole non splendé mai chiaro ma fu sempre tempo caliginoso e neppure
splendé mai la luna, ma tornarono subito a splendere appena eseguito
l’arresto di fra’ Vinterio a dì 5 Agosto 1473 ora seconda noctis circha.
5
Caracciolo, 2005:33.
O registro produzido em Perugia, por outro lado, reflete a perspectiva vencedora da disputa de
uma nova posse. O documento, redigido como uma comunicação oficial da cidade, informa
que em 6 de agosto de 1473 “chegou a Perugia um frade franciscano de além dos Alpes, preso
em Santa Maria Novella por ter furtado o anel de Santa Mustiola em Chiusi”, e que o anel foi
“entregue ao nosso Comuno por intermédio de Luca Delle Mine”. O texto conclui afirmando
5
“Durante cerca de vinte dias em que o Santo Anel permaneceu oculto junto ao ladrão, o sol jamais brilhou
claramente, mas o tempo permaneceu sempre enevoado; tampouco brilhou a lua. No entanto, logo tornaram a
resplandecer assim que foi efetuada a prisão de frei Vinterio, no dia 5 de agosto de 1473, por volta da segunda
hora da noite”.
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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que os magistrados peruginos enviaram embaixadores ao papa Sisto IV, para assegurar a
legitimidade da posse. Aqui, o tom é de providência e não de crime, a chegada da relíquia é
descrita como dádiva divina e reconhecimento político, um presente que eleva a cidade ao
estatuto de guardiã da relíquia
“A 6 de agosto in venerdì vene a Perogia un frate de l’ordine de santo
Francesco oltramontano, e fo preso in S. Maria Novella, perochè aveva
furato lo anello de Santa Mustiola a Chiusci, e alchuni dicevano, che era lo
anelo de la vergine Maria, e finalmente donò lo detto anello al Comuno
nostro per mezzanide Luca da le Mine [...] per la qual cosa el nostro
Comuno subito mandò li ambasciatori al papa Sisto IV
6
Caracciolo, 2005:37.
Entre esses dois polos narrativos, a perda e a aquisição, situa-se a voz (ao menos atribuída a
ele) de Fra Vinterio, cuja carta autografa, datada de 6 de outubro de 1473 e conservada no
Archivio di Stato di Perugia, revela um tom penitente e retórico. Preso havia dois meses, o
frade suplica aos priores e camerlengos sua libertação, lembrando que fora “por suas mãos,
mediadas por Deus, que esta excelsa e magnífica cidade recebeu o Sacratíssimo Anel da
gloriosa Virgem Maria”. Reconhece o sofrimento da prisão, mas declara aceitar todas as penas
“contanto que veja esta Santíssima Relíquia perpetuamente firmada” em Perugia, que agora
considera “minha pátria e minha salvação”. A carta evidencia a ambiguidade de sua posição:
simultaneamente ladrão e instrumento da vontade divina. A súplica, portanto, não é apenas
um pedido de perdão, mas uma tentativa de reconfigurar a narrativa do furto em chave
providencial, apresentando o crime como missão.
ASP, Acquisti e doni, 6 ottobre 1473
V. M. S.
Suplicase humilmente et devotamente per parte del vostro fidellissimo
servitori e perpetuo subiecto de le vostre excelse Signorie et oratore frate
Vinterio de la provintia de Lamagnia,
che conciosia cosa che già doi mesi lui sia stato con grandissimi adfanni
detenuto in carcere, non per altro che per essere lui stato quello per le chui
opere, medianti Idio, in questa vostra excelsa et magnifica città è pervenuto
el Sacratissimo Anello de la gloriosa Vergene Maria.
E parendo al ditto vostro fedelissimo servo et oratore recevere in questa
vostra città grandissimo torto, adtento al singulare et pretiosissimo dono che
per le suoi mano Idio v’à mandato a possedere,
humilissimamente se recomanda alle vostre excelse Signorie e alle
magnifiche Signorie de’ Signori Camorlenghi, che vi piaccia provedere a
lliberarme di questa carcere, com questo mostrando la vostra clemença,
benignità et gratitudine ad me,
6
“No dia 6 de agosto, uma sexta-feira, chegou a Perugia um frade da Ordem de São Francisco, oriundo de além
dos Alpes, e foi preso em Santa Maria Novella, porque havia furtado o anel de Santa Mustiola em Chiusi; e alguns
diziam que era o anel da Virgem Maria. Finalmente, o referido anel foi entregue ao nosso Comuno por intermédio
de Luca Delle Mine [...] por essa razão, o nosso Comuno imediatamente enviou embaixadores ao papa Sisto IV.”
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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che di omne passato adfanno so’ contento, puoi ch’io veggio questa
Sanctissima Relequia essere perpetualmente fermata nella vostra magnifica
città.
Advisando le vostre excelse et magnifiche Signiorie che io non disidero
usscire de pregione per partirme de Peroscia, ma voglio continuamente
vivere et morire in quella, mai per alchuno tempo partirme, canoscendo
che in niuno luoco del mondo posso stare sichuro se non in quista città, la
quale da mo innançe reputo che sia mia patria et mio salvamento.
E perciò, com prieghi humilissimi, in ginochioni denanti da voi, magnifici et
excelsi Signori Priori et magnifici Signori Consoli, Auditori et Camorlenghi,
recorgo a impetrare questa singulare gratia: che a tucti piaccia renderme
libertà et cavarme di questa carcere, nella quale insino ad mo, per amore de
le vostre magnifiche Signorie, ò portato com patientia omne pena.
Recomandomi finalmente alla infinita clemença de le vostre Magnifiche
Signorie, le quale l’altissimo Idio conserve in lunga felicità et salute”
7
Caracciolo, 2005:44.
Esses três testemunhos formam, em conjunto, um corpus documental singular, no qual o
mesmo evento é transfigurado por diferentes regimes discursivos: o milagroso em Chiusi, o
político e devocional em Perugia, e o confessional na voz do próprio frade. Essa multiplicidade
de perspectivas revela como o Santo Anello foi um objeto de negociação simbólica, em que fé,
poder e mobilidade se entrelaçam para produzir versões concorrentes de um mesmo
acontecimento. Não surpreende, portanto, que alguns estudiosos, como sugere Caracciolo
(2005), tenham levantado a hipótese de que o próprio processo do roubo e certos documentos
relacionados possam ter sido elaborados ou moldados posteriormente, de modo a legitimar a
narrativa de posse defendida por Perugia. Longe de desautorizar o valor das fontes, essa
possibilidade evidencia o quanto elas participam ativamente da construção discursiva do
sagrado, funcionando não apenas como registros do passado, mas como instrumentos de
7
Às Vossas Excelências e Magníficas Senhorias
Suplico humildemente e devotamente, em nome de vosso fiel servidor e perpétuo súdito, o orador frade Vinterio,
da província da Langônia, que, como sabeis, já dois meses se encontra detido com grandes sofrimentos na
prisão, não por outra razão senão por ter sido ele aquele por cujas ações, com a ajuda de Deus, nesta vossa excelsa
e magnífica cidade, chegou o Sacratíssimo Anel da gloriosa Virgem Maria.
Parecendo ao vosso fiel servidor e orador que sofre um grande prejuízo nesta cidade, considerando o singular e
preciosíssimo dom que, por suas mãos, Deus vos enviou para possuir, ele se recomenda humildemente às vossas
excelências e às magníficas senhorias dos senhores Camerlengos, pedindo que vos agrade providenciar a sua
libertação desta prisão, mostrando assim vossa clemência, bondade e gratidão para comigo.
Pois, apesar de todos os sofrimentos do passado, estou satisfeito ao ver que esta Santíssima Relíquia permanecerá
perpetuamente em vossa magnífica cidade.
Informo às vossas excelências e magníficas senhorias que não desejo sair da prisão para deixar Perugia, mas quero
continuamente viver e morrer nela, nunca me afastando por qualquer período, sabendo que em nenhum outro lugar
do mundo posso estar seguro senão nesta cidade, que há muito considero minha pátria e meu salvamento.
Por isso, com humildíssimas preces, de joelhos diante de vós, magníficos e excelsos senhores Prior e Magníficos
Senhores Consoli, Auditores e Camerlengos, venho solicitar esta singular graça: que a todos agrade conceder-me
liberdade e retirar-me desta prisão, na qual, até agora, por amor às vossas magníficas senhorias, tenho suportado
com paciência todo sofrimento.
Finalmente, recomendo-me à infinita clemência de vossas magníficas senhorias, que Deus Altíssimo conserve em
longa felicidade e saúde.
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
A TRANSLATIO DO SAGRADO ENTRE CHIUSI E PERUGIA: O SANTO ANELLO E SUAS
MOBILIDADES NOS SÉCULOS XV E XVI
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memória e poder uma construção que se manifesta de maneira particularmente concreta no
translado da relíquia, cuja circulação material reforça, negocia e visibiliza as complexas
relações simbólicas entre devoção, autoridade e prestígio.
Nas transladações, culto e procissões, esses ritos de legitimação são, como argumenta Caroline
Walker Bynum (2011), “formas materiais de pensamento teológico”: maneiras pelas quais o
sagrado se encarna nas tensões sociais e políticas. A relíquia não circula apenas no espaço
físico, mas também entre regimes de autoridade, economias simbólicas e afetos comunitários.
A cada novo deslocamento, o rito reorganiza as fronteiras entre o permitido e o profano, entre
o centro e a periferia da fé. Assim, o movimento das relíquias não é mero transporte: é um
processo cultural de negociação que brota do conflito e do dissenso de sentidos.
Tomando por base a discussão de Nascimento (2020) sobre o corpo santo e a espacialidade do
sagrado, é possível compreender essa passagem entre o texto e o rito. A autora propõe que as
relíquias instauram uma verdadeira geografia da graça, em que o espaço urbano e o espaço
litúrgico se tornam extensões do corpo venerado. A transladação, o culto e a exposição pública
de uma relíquia, portanto, não são apenas práticas devocionais, mas rituais de territorialização
do sagrado ou sacralização do espaço. Aplicada ao caso do Santo Anello, essa perspectiva
permite ver como a disputa entre Chiusi e Perúgia ultrapassa a questão da posse do objeto e se
converte em disputa pela autoridade do espaço, sobre qual cidade detém, em sua materialidade
e em sua liturgia, o verdadeiro centro da memória da relíquia em disputa.
Fernandes (2014), ao examinar os ritos públicos tardo-medievais, também reconhece essa
ambiguidade. Para o autor, os símbolos religiosos e políticos são “fenômenos culturais
dinâmicos, desenvolvidos em redes de interação”, capazes de articular disputas em gestos
cerimoniais que simultaneamente ordenam e questionam a hierarquia. Aplicada ao caso do
Santo Anello, essa perspectiva revela que o culto não nasce do consenso, mas da complexa
dialética entre conflito, narrativa e ritualização. O anel é, portanto, não apenas um vestígio do
passado sagrado, mas a materialização de uma história disputada, continuamente reencenada
em sua circulação, nas palavras e nas formas do rito.
Conclusão
A análise conjunta das fontes textuais, visuais e rituais permite compreender o Santo Anello
não como objeto isolado, mas como um de relações históricas. Em torno dele se organizam
narrativas de fé, representações de poder e práticas rituais que atravessam séculos. A relíquia,
ao ser narrada e disputada, revela a vitalidade das trocas simbólicas que sustentam o
cristianismo ocidental, e a permanência do sagrado como força social em movimento. Paul
Ricoeur (2011) lembra que narrar é também uma forma de configurar o tempo: toda narrativa
histórica organiza o passado em uma trama de sentido. Ao reconstruir a trajetória do Santo
Anello, o historiador participa dessa configuração, reinscrevendo o tempo do milagre na
temporalidade do relato. A história da relíquia, portanto, não é apenas objeto da memória, mas
memória em ato, em constante reinterpretação, um elo entre o acontecimento e sua
rememoração, entre o fato e sua refiguração simbólica.
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Desse modo, o estudo do Santo Anello contribui para ampliar o campo das análises sobre as
relíquias cristãs, mostrando que elas não são apenas objetos de culto, mas também agentes
históricos de conexão e transformação. Entre Jerusalém e Perúgia, entre a dádiva e o furto,
entre o casamento de Maria e a devoção dos fiéis modernos, o anel permanece como elo entre
mundos, tempos e linguagens, uma metáfora viva da própria circulação do sagrado na história.
Mais do que uma relíquia estática, o Santo Anello deve ser compreendido como um objeto em
movimento, cuja história é a própria história das relações que o sustentaram, entre judeus e
cristãos, entre monges e prelados, entre fiéis e autoridades, entre o passado da e sua contínua
reatualização.
O estudo do Santo Anello permite compreender como um único objeto pode concentrar e
irradiar sentidos múltiplos: entre e poder, gesto e palavra, presença e ausência. Sua trajetória,
marcada por deslocamentos físicos e simbólicos, revela a força das relíquias como agentes de
produção de memória e espaço, e como instrumentos de negociação entre comunidades e
instituições. Ao articular circulação, narrativa e rito, esta pesquisa não busca oferecer uma
resposta definitiva, mas abrir caminhos para futuras discussões sobre a vitalidade dos objetos
sagrados na história cristã. O anel, signo da aliança e da mediação, permanece, assim, metáfora
do próprio historiador diante do sagrado: entre a fidelidade ao texto e o desejo de compreender
o invisível que o move.
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Fabiano Fernandes
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005) e Pós-Doutor
pela USP (2016). Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1999), Estágio
de Doutoramento na Universidade do Porto (2004). Graduação em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Professor de História Medieval da
Universidade Federal de São Paulo. Membro do LEME-UNIFESP (Laboratório de Estudos
Medievais). Coordenador do Laemeb (Laboratório de Estudos Mediterrânicos e Bizantinos).
Pesquisador Associado do Projeto Temático Uma História Conectada da Idade Média.
Comunicação e Circulação a partir do Mediterrâneo. Pesquisador da Relicário - Rede de
Pesquisa Sobre Arte e História das Relíquias Cristãs Ibéricas.
Fernandes, F. e Romualdo, W. S.
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Wemerson dos Santos Romualdo
Mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Graduação em
História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Participante do Projeto
e Grupo de Estudos "Sacralidades Medievais". Participante do "OUTREMER" (Grupo de
Estudos sobre Cruzadas e Ordens Militares). Estudante/Pesquisador da "Rede Relicário" - Rede
de Pesquisa sobre Arte e História das Relíquias Cristãs Ibéricas. Participante do "Laboratório
de Estudos Mediterrânicos e Bizantinos" (LAEMEB - UNIFESP). Membro pesquisador
iniciante (early-career researchers) da Society for the Study of the Crusades and the Latin East
(SSCLE). Membro da 'Associação Brasileira de Estudos Medievais' - ABREM.