Marcos H. Camargo
A REDESCOBERTA DO REAL NO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO
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A REDESCOBERTA DO REAL NO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO
EL REDESCUBRIMIENTO DE LO REAL EN EL PENSAMIENTO
CONTEMPORÁNEO
Camargo, Marcos H.
Universidade Estadual do Paraná-Brasil
marcoshcamargo@yahoo.com.br
Resumo
Este breve ensaio tem por objetivo apontar para o progressivo abandono dos idealismos e das
abstrações herdados do passado neoplatônico ocidental, em direção a um materialismo difuso,
sintoma das descrenças pós-modernas que estão erodindo os valores modernos que haviam
norteado até aqui as instituições da civilização ocidental.
Palavras-chave: abstração, essencialismo, racionalidade, percepção, estética.
Resumen:
Este breve ensayo pretende apuntar al progresivo abandono de idealismos y abstracciones
heredadas del pasado neoplatónico occidental, hacia un materialismo difuso, síntoma de las
incredulidades posmodernas que están erosionando los valores modernos que hasta ahora
habían sustentado las instituciones de la civilización occidental.
Palabras clave: abstracción, esencialismo, racionalidad, percepción, estética.
Abstract
This brief essay aims to point to the progressive abandonment of idealisms and abstractions
inherited from the Western Neoplatonic past, towards a diffuse materialism, a symptom of the
postmodern disbeliefs that are eroding the modern values that had so far underpined the
institutions of Western civilization.
Keywords: abstraction, essentialism, rationality, perception, aesthetics.
Marcos H. Camargo
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Introdução
Em seu livro “O Nascimento da Tragédia”, F. Nietzsche questiona Sócrates a respeito de seu
desprezo pela vida e sua aposta na razão. Segundo Nietzsche (2020), para Sócrates a vida
precisava ser corrigida pela razão humana, de vez que o Bem, o Belo e o Verdadeiro
podiam ser acessados pela racionalidade, que não se encontra neste mundo caótico e sem
sentido. Aqui nasce a pretensão de “melhorar o mundo”, baseada na filosofia implementada
por Platão, cuja mentalidade vai nortear toda a ação que a civilização ocidental produzirá no
planeta e sobre os povos.
Orientado por Parmênides e Sócrates, Platão cinde o real em duas partes, indicando o mundo
sobrenatural como modelo e referência da perfeição, e o mundo natural como réplica
imperfeita, portanto sujeita a melhoramentos. Aqui, a filosofia deixa de buscar pela vida
virtuosa e passa a perseguir a verdade, que se encontra segundo os essencialistas no
mundo suprassensível e inteligível, bem apartado deste mundo corruptível, tomado por
ilusões e sombras, em que vivemos uma vida que Sócrates ensina a desprezar (Onfray, 2008).
Seiscentos anos depois da invenção do essencialismo socrático-platônico, Santo Agostinho
procurou dotar a teologia cristã de um estofo mais filosófico, e encontrou no neoplatonismo o
pensamento mais adequado para fundamentar as doutrinas da religião, relacionando o mundo
suprassensível de Platão ao céu judaico-cristão, e este mundo natural em que vivemos ao vale
de lágrimas, onde os cristãos devem expiar seus pecados.
A associação entre o pensamento neoplatônico, com a teologia cristã, vai dar sustentação ao
essencialismo e abstracionismo filosóficos até, pelo menos, o século XIX foram mais de
dois mil anos de idealismo neoplatônico, que fundamentaram a visão de mundo ocidental.
Segundo Nietzsche (2001), seria preciso nos livrar do engano socrático-platônico, para
devolver o pensamento a seu justo lugar. Para isso, portanto, seria preciso abandonar o
abstracionismo, a duplicidade de mundos e a obsessão com a verdade, desenvolvendo-se uma
filosofia que defenda a vida humana, ao invés de forçar as pessoas a se tornarem puros
pensamentos.
Consequentemente, mas de uma forma não planejada, a sociedade ocidental finalmente se
cansou do abstracionismo neoplatônico e cristão, negando crença à modernidade, por meio de
uma caótica revolta apelidada de “pós-modernidade”. A partir dos anos 1970/80, o niilismo
nietzschiano se instalou na sociedade ocidental, abandonando o milenar essencialismo
neoplatônico e produzindo uma tremenda novidade histórica uma renascença do período
trágico dos gregos, com sua noção de precariedade e finitude humanas, como pré-condição
para a compreensão do lugar do humano neste único mundo o real.
O que a razão tem a ver com isso?
Muito tempo antes dos fundadores da ciência moderna, Descartes, Bacon e Newton, o
pensamento grego buscava o logos, a ordem estrutural da natureza, os fundamentos das
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causas comuns, os princípios universais, como o ilimitado primordial de Anaximandro.
Xenófanes entendeu haver uma divindade inteligente que movia tudo com o pensamento.
Heráclito afirmava ser o fogo a origem de tudo. Anaxímenes dizia que o ar primordial dera
início ao mundo.
De certa forma, para aqueles gregos, o logos, compreendido como o fundamento do discurso,
a natureza da própria linguagem, a estrutura da psyché e o próprio princípio universal se
encontrava por detrás das coisas, servindo-lhe de causa primária. Também entendido como o
“comum”, o logos é partilhado por todas as coisas e eventos, que ocorrem segundo seu
desígnio. Essa nuance do termo vem à tona como um eco: “ouvir o logos especialmente
quando Heráclito comenta sobre a sabedoria dos ouvintes ao “falar em acordo”, homologien.
(Kahn, 2009: 131). Aqui emerge a importância da razão (logikè technè) para os pensadores,
de vez que se acreditava que o pensamento racional humano era semelhante à estrutura do
próprio mundo.
Críticos, como Diodoto
1
, do período helenístico, afirmavam que ao tempo de Heráclito os
pensadores estavam mudando seus discursos sobre a natureza das coisas (peri phiseós),
para direcionar-se aos discursos sobre a vida do homem em sociedade (peri politeias). (Kahn,
2009: 50) O entendimento entre aqueles primeiros pensadores estava em tecer uma analogia
entre a ordem do cosmos, o logos, e os ordenamentos que fundavam a sociedade humana. A
política (polis+technè), a arte de governar a cidade, vinha sendo entendida como uma
ciência tributária do logos, de vez que o homem também se encontra no cosmos, do qual o
logos é o princípio organizativo. Era preciso encontrar as leis sociais mais justas e racionais
para o governo da polis, de acordo com os desígnios do logos que se acreditavam ser
reconhecíveis pela razão humana.
Muitos marcos na história podem ser considerados como a certidão de nascimento da ciência
ocidental. Um desses momentos formidáveis se quando Heráclito anuncia que tanto as
palavras faladas, como o padrão universal da experiência participam integralmente do logos.
A ordem do mundo fala aos homens como uma espécie de linguagem que eles devem
aprender para compreender(Kahn, 2009: 140). Aqui se encontra o entrelaçamento original
entre a linguagem humana e a estrutura do mundo.
Conhecer tornou-se o exercício de colocar em palavras aquilo que a experiência humana
consegue apreender do mundo, de vez que tanto a palavra humana como o próprio mundo têm
o mesmo fundamento no logos universal. Nesse sentido, a primeira lógica (logos+technè)
tornar-se-á a primeira gramática (graphma+techné).
Qualquer linguagem, seja aquela da natureza, que Heráclito afirma falar aos homens, seja a
linguagem humana formada de palavras, compõe-se de signos e códigos que precisam ser
interpretados, para que deles emerja a sabedoria por de trás de suas grafias.
Interpretar é quase sinônimo etimológico de traduzir. Quem interpreta traduz um símbolo em
ideias, palavras ou imagens. Mas o papel da interpretação ocorre quando uma leitura
1
Filósofo estoico do século I da era comum, amigo de Cicero, especializado em Lógica.
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interna (inter+legere = inteligir), isto é, quando a capacidade humana de inteligir o símbolo
permite sua interpretação. A inteligência é um tipo característico de cognição, especializado
em traduzir símbolos em pensamentos organizados na mente (noos).
A leitura do mundo sempre foi necessária, não apenas para os humanos, mas também para os
animais, pois a todo momento é preciso encontrar abrigo, alimento, proteção e parcerias, que
resultam da interpretação que o espécime faz de seu ambiente. A linguagem que traduz o
logos para a consciência é um método inteligente de leitura dos símbolos naturais e
convencionais. A ciência do logos, ou seja, a lógica, se constitui por meio de métodos de
tradução do mundo, uma leitura inteligente dos signos, cuja dedução conduz ao raciocínio. A
razão, por sua vez, é esse resultado das diversas leituras inteligentes dos signos, a partir das
sintaxes da linguagem.
Por outro lado, a maioria de nós ainda imagina que a razão é o pináculo da trajetória humana,
fim e finalidade do desenvolvimento civilizatório. Para muitos de nós, a razão é uma
qualidade sem qualquer negatividade, totalmente positiva, boa, bela e verdadeira.
Aprendemos isso a partir dos milhares de anos submetidos ao neoplatonismo vulgar, do senso
comum.
Ao privilegiar a razão, o ocidente transformou tudo aquilo que não procede da racionalidade
em um perigoso inimigo a ser evitado e suprimido da vida humana. Desse modo, as emoções,
as sensações, os sentimentos, as paixões, intuições e desejos foram colocados sob forte
vigilância moral, inclusive condenados e suprimidos (quando possível) dos processos
cognitivos e intelectuais.
Mas, o que é mesmo a razão, para merecer tamanha reverência do saber instituído?
Em primeiro lugar, a razão não é uma instância superior da mente, para onde o destino
humano deve se encaminhar, na medida em que a vida se torna mais lógica. A razão é um
instrumento da mente, que consiste na habilidade de ler (inte-ligir) as leis naturais que agem
no ambiente e imitá-las na forma de leis comunitárias, cujas normas visam o sucesso da
coletividade humana e de seus membros.
Vaidade das vaidades dos pensadores, a razão foi incensada como a meta mais alta da
humanidade, justamente por um grupo de pessoas que tem a razão como instrumento de
trabalho os intelectuais. Ou seja, trata-se de “puxar a sardinha para sua brasa”, em meio às
disputas pelo poder social.
A palavra latina pondus, do verbo pendere (pesar), vem ao português como „ponderação‟, um
dos atributos da racionalidade, que se transformou na arte de pesar os prós e contras de uma
dada situação, de modo a decidir por esta ou aquela ação mais conveniente. Contudo, sopesar
vantagens e riscos de uma situação depende fortemente das informações corretas à disposição
do juiz (consciência). Sem dados, informações e uma boa memória de experiências, não
razão alguma que possa ponderar sobre a melhor ação em favor do humano. Em outras
palavras, a razão não funciona bem sem o auxílio do conhecimento experimental, que lhe
oferece elementos para a criação de modelos de mundo para aplicação geral.
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Outro risco sempre presente ao juízo racional é tomar a natureza (phýsis), pela cultura
(nómos), quando antropologizamos a realidade. A advertência do sofista Protágoras, segundo
a qual o homem é a medida de todas as coisas”, aumenta o perigo das decisões ditas
ponderadas. Se a razão pode examinar as coisas com critérios humanos, ela não analisa o
mundo real, mas lida com uma simulação de realidade forjada pelos nossos sentidos.
Condenada à explicação e à simplificação, em função da abstração dos conceitos abrigados na
linguagem, a razão filosófica criou um mundo sem mosquitos, sem miasmas, sem fluídos
corporais, sem surpresas e com superfícies lisas de ângulos retos. Um mundo condenado por
Nietzsche que, através de seus personagens do livro Assim falou Zaratustra”, declarou que
tudo o que é reto mente. (...) Toda verdade é curva, porque o próprio tempo é um círculo”.
(Barrenechea et. al, 2001: 123)
A linha reta, o ângulo reto, o triângulo de ângulo reto. Nós não os
encontramos (naturalmente) mesmo quando à primeira vista imaginamos tê-
los vistos. Afora a retidão dos cristais, o círculo é a única forma simples da
geometria que podemos encontrar na natureza: a vemos no céu, na
distância, na forma do sol e da lua cheia. [...] A linha reta é evidência de
inteligência e civilização. A linha reta é a impressão digital da consciência.
Norretranders, 1998: 379/380
A razão não se confunde com a verdade, pois muitas vezes sua função é criar uma mentira
útil, que funciona como instrumento organizador da linguagem e das regras de convivência
comunitária. Por isso mesmo, vez por outra, é preciso corrigir seus excessos, de modo a nos
lembrar que somos seres naturais, pertencentes à realidade deste único mundo realmente
existente.
Enquanto não podemos ler o mundo senão como humanos, a razão é o principal instrumento
de antropomorfização do real. Por isso, precisamos nos lembrar que a leitura inteligível é
parcial (no duplo sentido), de modo que possamos corrigir, de tempos em tempos, o excesso
de verdades com as quais a razão nos engana acerca do mundo.
O que é o pensamento? a pergunta que não quer calar
O pensamento não é uma exclusividade da espécie Homo sapiens, pois se trata de um
fenômeno mais ou menos presente em todas as espécies animais vertebradas, que possuem um
sistema nervoso desenvolvido.
Embora haja diferenças sensíveis entre o pensamento humano e de outras espécies animais,
seu emprego nos seres vivos tem aproximadamente a mesma função. O pensamento é um
resumo de informações importantes para gerar e gerir a homeostase do organismo, que é
comunicado ao cérebro pelos órgãos dos sentidos. O pensamento é formado de afecções,
percepções, interocepções, emoções e sentimentos compactados em mensagens organizadas
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pelo inconsciente, que se transformam em estratégias de defesa do organismo, com ou sem o
juízo da consciência.
No passado, se acreditava que a mente metafísica do homem concebia o pensamento, que
“descia” à consciência para sua formatação em atitudes racionais, em favor do indivíduo e da
sociedade. Hoje sabemos que o pensamento é uma “explicação” de eventos que ocorrem
dentro do alcance sensorial do espécime, na forma de registros perceptivos, de modo a caber
na memória, para ser empregado em situações análogas.
Do latim, recebemos os termos plici/plica/plicare, que significam respectivamente „pregar‟,
„prega‟, „dobrar‟, gerando, por exemplo, o termo francês plissé e o português, plissado. De
modo geral, as palavras que comportam essa raiz latina (plici) referem-se a algo que não é
plano, nem liso, contendo dobras, protuberâncias, superfícies de difícil superação. Quando
várias línguas neolatinas desejam significar alguma coisa de difícil execução ou de raro
entendimento, utilizam-se da palavra „complicação‟, cujo prefixo latino cum significa „junto
com‟ ou „ajuntamento‟, permitindo designar algo com muitas dobras‟ ou algum tipo de
evento, coisa ou ideia de difícil acesso, devido suas múltiplas características. Noutros casos, a
demanda é pela diminuição ou eliminação das „dobras‟ incompreensíveis, deixando de fora
(ex) ou eliminando as plici “explicação”.
A função clássica da linguagem e da razão é “explicar” o mundo. Mas, nesse ato de retirada
da complexidade das coisas, a linguagem e a razão falsificam o mundo, criando uma
simplificação ilusória da realidade, um mundo metafísico.
Destas mesmas raízes latinas, temos a palavra „simples‟, que se compõe do prefixo sin (sem),
somado à raiz plici, designando a ideia de algo “sem dobras”, “liso”, “plano” e de fácil
acesso. „Simplificar‟ é o mesmo que resumir a complexidade de algo real. Toda representação
sígnica e simbólica são resumos objetivos daquilo que representam. De modo que a
linguagem e a razão são simplificações artificiais do mundo para uso pessoal e coletivo
(Dizionario etimológico online, 2021)
Grande parte das palavras que usamos cotidianamente não mantém vínculos necessários e
suficientes com a realidade, porque são invenções arbitrárias da cultura. Quando as utilizamos
para dizer aquilo que julgamos corresponder ao mundo real, muitas vezes estamos
construindo simulacros fantásticos nos quais aprisionamos nossas mentes.
“Explicar” é uma forma inevitável de traição ao acontecimento, coisa ou ideia, que desejamos
tornar compreensível. Quando “explicarmos”, estamos „alisando‟ e „aplanando‟ algo que
realmente não é liso, nem plano. As “explicações” filosófico-científicas são o que comumente
chamamos de pensamento organizado. Mas, tanto os conceitos, quanto sua organização
lógico-linguística não correspondem à realidade do mundo, são simulacros do real produzidos
pela cultura, num certo tempo e num certo lugar, para uso da comunicação entre as pessoas.
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O pensamento por conceitos
Até meados do culo XX, relacionar “arte” com conhecimento era um nonsense típico de
gurus da new age dos anos 1960. Representantes das chamadas “ciências exatas”, cuja rigidez
dos conceitos garantiam sua universalidade, olhavam para as artes com certa
condescendência, atribuindo-lhe um humilde cubículo no edifício do conhecimento, em
função da carência de exatidão
2
que marcam a obra de arte e o pensamento estético.
Mais de cinquenta anos depois de Woodstock, em nossos dias, a tecnociência não está tão
certa de sua exatidão, como tem seguidamente se valido da criatividade artística para
compreender fenômenos que escapam da epistemologia tradicional.
Nesses últimos tempos nos convencemos de que qualquer conhecimento construído pelo
homem se compõe de vários tipos de simulação do real sejam simulações codificadas em
signos que representam ideias sobre o real, como memórias de experiências sensoriais que
simulam o relacionamento do real com o corpo. Porém, para o senso comum, a palavra
„simulação‟ ainda guarda uma conotação negativa, porque leva a pensar em pessoas
(dis)simuladas que enganam os bem-intencionados e que simulacros de coisas reais se passam
por verdadeiros para nos iludir.
A filosofia que se desenvolveu no ocidente tornou-se a mãe da tecnociência. Tanto a mãe
como a filha sempre repudiaram e desconfiaram dos simulacros, preferindo autorizar certas
representações simbólicas da realidade para configurar o real e comunicar seu conhecimento,
em detrimento de outras mimesis menos confiáveis. Essa longa tradição de repúdio ao
simulacro tem em Platão seu principal articulador. Em seus escritos, principalmente no livro
A república, o filósofo ateniense chega a expulsar os artistas de seu governo ideal, pelo fato
deles produzirem simulacros de coisas reais e imaginárias, na forma de pinturas, música,
teatro, esculturas, gerando mimesis ilusórias que confundem a inteligência.
O conhecimento, segundo os platônicos (Plotino, Agostinho, Ficino, Tomás de Aquino,
Descartes, Hegel), não provém de simulacros que mimetizam a realidade por meio de
imagens, mas da pesquisa racional e intelectual sobre a essência das coisas, conduzindo à sua
definição em categorias universais. Apenas dois sistemas de signos (verbal e matemático)
teriam condições, segundo os platônicos, de representar fidedignamente as qualidades
sensíveis e suprassensíveis do real, de modo a formar o único conhecimento que conduz o
homem à verdade: o conhecimento lógico-racional.
2
Proveniente do latim, a palavra exactus (exato) compõe-se da partícula ex (fora, ausência, negação) e do
particípio passado do verbo agere: actus (ação, movimento). A „exatidão‟ das ciências implica um conhecimento
formado na ausência do movimento do mundo. Somente quando a ciência consegue se evadir da assimetria, da
irregularidade, obscuridade e vagueza do mundo real, ela pode apresentar resultados “exatos” e
matematicamente perfeitos, a partir de equações simétricas e harmônicas, antecipadas pela ordem gica do
pensamento abstrato. Mas, a ciência é exata quando sua atividade não corresponde ao mundo real, que é
fluído e movediço. A ciência que leva em conta o mundo real não pode ser exata. „Exatidão‟ é qualidade do que
é perfeito, porque não se move: o perfeito não evolui, portanto, não se move. Em um mundo em que tudo evolui
e se move, não pode haver qualquer exatidão.
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A crença na superioridade cognitiva do verbo e do número manteve-se inalterada por centenas
de anos, até o século XIX desta era, quando autores de diversos campos do pensamento e da
ciência começaram a desconfiar da suposta neutralidade da linguagem.
Charles Darwin, em seu livro “A origem das espécies” (1859), comentou que muitos teóricos
continuavam sustentando um cenário cartesiano onde ocorreriam as diferenças entre os
homens e os demais animais: os humanos, portadores de um pensamento racional, enquanto
os outros animais, incluindo-se os grandes macacos, seriam meras máquinas de estímulo-
resposta, sem qualquer racionalização possível.
Essas ideias não eram sustentadas apenas por psicólogos behavioristas, mas também por
muitos outros profundos pensadores e cientistas cognitivos. No entanto, esta é uma visão
histórica que tem se provado incorreta, pois seus apoiadores se baseiam em uma teoria
equivocada da evolução do pensamento.
A evolução do pensamento não segue uma linha que avança da simples associação até as
complexas cognições, porém tem início em adaptações inflexíveis e especializadas,
alcançando atividades individuais, autorreguladas e flexíveis, baseadas em representações
cognitivas, inferências e automonitoramento. Pesquisas empíricas claramente demonstram
que os grandes macacos operam de modo flexível, inteligente e autorregulado e fazem isso
sem linguagem verbal, cultura ou quaisquer outras formas humanas de sociabilidade.
(Tomasello, 2014). “A forte associação que se faz do conhecimento com o pensamento e o
raciocínio não é um fato, é uma crença cultural um meme viralizado, alguns diriam que
nos confunde.” (Claxton, 2015: 3)
Emulando a visão platônica do real, por milênios, o pensador e o cientista ocidentais
buscaram pela essência das coisas, evitando os fantasmas de suas imagens, os simulacros que
supostamente iludem o incauto perscrutador. A busca pela essência das coisas a partir de
uma construção gramatical/matemática, sem vínculo direto com o real criou uma série de
escatologias geradoras de abstrações, que passaram a habitar as cabeças dos pensadores
metafísicos, como parasitas ideológicos. Com o tempo, esses conceitos abstratos ganharam
uma impressão de realidade muito mais forte do que as coisas reais.
A crença metafísica inverteu a lógica natural, de modo que este mundo foi transformado em
um mero jogo de simulacros, enquanto as ideias abstratas dos filósofos criaram outro mundo
de realidades essenciais, que se tornou “mais real” (o conhecido ens realissimum, da
Escolástica) do que a realidade concreta deste mundo.
Essencialismo: efeito colateral da metafísica
A essência, para esses pensadores e cientistas, era capaz de ser não apenas detectada, mas
também mensurada, tal como se procede com as coisas reais. Segundo o que se acreditava, a
essência seria o conjunto definido das qualidades do ser, que habita todos os entes
(indivíduos) da mesma categoria. Num exemplo, podemos dizer que a „cadeira ideal‟ é a
essência que habita o corpo de todas as cadeiras deste mundo. Assim, a “essência de cadeira”
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não serve ao sofá, nem à poltrona ou à cama, ela é única. Se a essência da cadeira é única e
se comunica com seus próprios entes (as cadeiras existentes neste mundo), uma essência
para cada coisa, que é própria e insubstituível.
Até princípios do século XX, os físicos teóricos e experimentais não acreditavam em átomos,
justamente porque eram essencialistas e pensavam que cada coisa existente tinha sua própria
essência, não podendo compartilhar de qualidades categoriais com outros elementos ou
coisas.
A sica moderna ainda era tão fortemente platônica, que a polêmica entre
o atomismo clássico de Demócrito e o substancialismo essencialista de
Platão sequer era considerada. A teoria de que a matéria consiste de átomos
não era bem aceita por volta do século XIX. [...] Até que nas primeiras
décadas do século XX, físicos como Einstein, J. J. Thompson e Niels Bohr,
provaram de uma vez por todas que os átomos, de fato, existem.
Norretranders, 1998: 17
A decepção sofrida pelos físicos platônicos, forçados a admitir que não existe uma essência
para cada coisa, levou-os a aceitar o compartilhamento de átomos comuns a várias
substâncias. Este foi um daqueles momentos a que Thomas Kuhn denominou de “quebra de
paradigma”. Em uma pergunta: porque existem “quebra de paradigmas”, se os cientistas usam
de métodos e provas abalizadas por cálculos racionais, de modo a garantir a previsibilidade de
um fenômeno?
Talvez, uma resposta para isso seria afirmar que todo conhecimento é, antes de tudo, uma
crença que se estabelece em nossa mente. A ciência também depende de crenças racionais. De
que serve saber que existe a força gravitacional, se descrendo de sua existência deixo um
prato de porcelana para flutuar no ar? Devo crer que se eu deixar um prato de porcelana para
flutuar no ar, ele irá cair e se quebrar preciso acreditar na ação gravitacional, para prever sua
reação. Neste caso, a crença racional é útil, mas quando as crenças envelhecem deixam de
auxiliar na compreensão da realidade.
De acordo com psicólogos evolucionistas e cognitivistas, nosso cérebro evoluiu para prever o
futuro comportamento das coisas e eventos, de modo a planejar ações para tirar proveito dessa
previsibilidade, em favor da vida. Toda gica é composta de um conjunto de saberes que
antecipam o comportamento de coisas e eventos. A observação das estrelas permitiu a
construção de equipamentos capazes de prever seus movimentos e, assim, antecipar ações,
plantar na primavera e colher no outono para ter alimento no inverno.
Sem acreditar que as coisas existem dentro de um movimento previsível que se comportam
quase sempre de uma determinada maneira , os humanos não poderiam prosperar em seu
meio ambiente.
Outra grande fonte de previsibilidade, que garante ao homem sentir-se protegido do caos da
manifestação do mundo, é a linguagem humana. Quando se codificam palavras para
representar coisas, eventos e ideias, utilizando-as em enunciações hierarquicamente
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ordenadas, na forma de sujeito, predicado e verbo (gramática), permite-se uma grande
previsibilidade com relação ao próprio pensamento e o pensamento do outro (teoria da
mente), com quem partilhamos uma comunidade.
Todas as fontes de previsibilidade constituídas culturalmente emprestam ao humano
paradigmas interpretativos das coisas e dos acontecimentos do mundo, permitindo estabilizar
o caos do desconhecido, enquanto nos oferecem um sentido para o mundo.
Entretanto, todas as interpretações que fazemos acerca da previsibilidade das coisas se
automatizam com o tempo e se tornam crenças poderosas, independentes dos fenômenos em
razão dos quais foram criadas. Muitas vezes as crenças culturais evitam que percebamos
novos fenômenos diferentes daqueles que costumávamos prever. Crenças poderosas se
tornam paradigmas que, por sua vez, evoluem para símbolos culturais adotados
permanentemente por uma comunidade. Quebras de paradigmas ocorrem quando os símbolos
culturais não servem mais para explicar o novo mundo em que nos encontramos.
Melhor seria, se tivéssemos a possibilidade de conhecer diretamente as coisas, sem a
intermediação dos sentidos, dos conceitos e dos símbolos. Mas os corpos humanos embora
sejamos parte deste mundo real mantêm com as coisas e eventos um vínculo mediado por
órgãos sensitivos, que nos permitem perceber apenas parte do real, obrigando-nos a imaginar
como esse real pode ser, de fato. É a imaginação que une os pontos e tenta nos oferecer uma
imagem aceitável do mundo, tal como ele provavelmente é. Imaginar é simular!
Nosso conhecimento do mundo é formado de simulacros que produzimos com a experiência
de nosso corpo em meio ao ambiente real, assim como também por meio de interpretações de
símbolos naturais e convencionais (estes últimos construídos pela cultura humana). Com o
tempo, a força cognitiva dos símbolos e simulacros culturais foi se tornando tão decisiva para
a comunicação humana, que sobreveio a antigos pensadores a ilusão de que os símbolos e
simulacros não representavam as ideias humanas e as coisas do mundo, mas sim as essências
das ideias e coisas habitantes de um mundo metafísico, transformado em modelo e meta deste
mundo efêmero e provisório, onde vivemos nossas vidas, equivocados pelas aparências das
imagens percebidas pelo corpo.
Antes que a teoria de Darwin se tornasse popular, ainda no século XIX, o essencialismo
governava o mundo metafísico. Entendia-se que cada espécie detinha uma forma ideal e
eterna, com propriedades definidas (essência), que a distinguiam de outras espécies (cada qual
com suas próprias essências universais). Os eventuais desvios da forma ideal se deviam a
erros ou acidentes, próprios da imperfeição material do mundo físico.
Pensemos num concurso entre cães, que visa identificar o „melhor‟ exemplar entre um
conjunto de competidores de determinada raça. Porém, os cães não competem diretamente
entre si, mas são comparados pelos juízes em relação à maior proximidade de um modelo
hipotético de cão. Quando Golden Retrievers competem, por exemplo, os juízes comparam
cada competidor com o modelo ideal de um Golden Retriever. O cão tem o peso ideal? Suas
pernas são simétricas ao desenho ideal? A relação do crânio com o corpo contém a medida
ideal? A pelagem contém a cor ideal? Assim, quaisquer não-conformidades entre o espécime
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e o modelo ideal de cão são consideradas „erros‟, sendo que o cão com menor número de
incompatibilidades com o modelo vence a competição. Pergunta: o modelo ideal de Golden
Retriever foi extraído da natureza ou da cabeça dos juízes? quando um conceito abstrato
detém a autoridade de julgar a (in)correção de coisas reais, estamos falando de metafísica,
mas também de preconceitos.
Até meados do século XX, vários pensadores ainda refletiam sobre este mundo, tal como em
um concurso de cães. Se algum ente (indivíduo) apresentasse um detalhe estranho à medida
ideal de sua espécie, o „erro‟ se debitaria ao espécime, mas nunca ao modelo ideal (essência).
(Barrett, 2017: 159)
Quando Charles Darwin começa a ser mais bem compreendido, as variações entre os
indivíduos de uma espécie deixam de ser um erro, para se tornar uma adaptação ao ambiente.
Toda população de animais guarda variações entre seus membros, pois algumas delas
providenciam melhores adaptações às modificações do entorno, garantindo sobrevivência a
indivíduos que diferem de seus pares e, por isso, se reproduzem mais que os outros. Essa é a
teoria de Darwin em ação, conhecida como seleção natural ou a sobrevivência dos mais
adaptado.
Cada espécie é uma população de indivíduos com características aproximadas, mas que
diferem entre si, sem essência ou núcleo invariável. Nenhuma espécie persegue seu modelo
ideal, projetado como meta de perfeição. Pelo contrário, quanto maiores as coincidências
estatísticas dentre os espécimes, maiores os riscos de uma extinção geral, quando uma
catástrofe se abate sobre todos somente os diferentes sobrevivem. A teoria de Darwin se
baseia na variação, enquanto o essencialismo se baseia na identidade. Essas duas concepções
são profundamente antagônicas.
Mas, porque o essencialismo é uma ideia tão poderosa, a ponto de iludir grandes pensadores e
cientistas, desorientando os avanços filosóficos e científicos? Como as essências não podem
ser diretamente observadas, as pessoas se sentem livres para acreditar nelas, justamente
porque não podem ser encontradas ou provadas. Também é cil refutar um experimento que
não detectou a essência: “Nem todas as instâncias do fenômeno foram vistas ainda.” Ou “a
essência está lá, no fundo dessa complicada estrutura material, por isso não pôde ser
alcançada.” Ou ainda: “nossos aparelhos e equipamentos não estão suficientemente
desenvolvidos para encontrar a essência, mas um dia ela se revelará.” Esses argumentos
esperançosos são logicamente impossíveis de serem refutados.
O essencialismo está vacinado contra evidências negativas. Por isso, ele altera o modo como a
ciência é praticada. Quando cientistas acreditam em um mundo de essências que espera para
ser descoberto, eles se devotam a encontrar esse fenômeno, numa busca interminável.
(Barrett, 2017: 162)
O essencialismo parece ser uma herança de nossa construção psicológica. Os humanos
criaram as categorias e as espécies para distinguir as coisas e aclarar o mundo naturalmente
confuso e obscuro. Quando nomeamos essas categorias e espécies com palavras, como „cão‟
ou „cadeira‟, as transformamos em representações das coisas e ideias. Um dos efeitos
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colaterais da estratégia de representação da linguagem verbal resulta numa confusão mental
entre a palavra (representação da coisa) e a coisa representada: muitos de nós passam a crer
mais na palavra que no mundo que ela nomeia. Ou pior ainda: muitos acreditam que a palavra
pode gerar realidades, quando utilizadas em orações, maldições, feitiços, como é comum se
encontrar em tradições antigas, como a cabala ou mesmo a bíblia judaico-cristã Deus teria
criado o mundo proferindo palavras de poder: “Fiat luz”!
Essências verbais
As palavras é uma maravilhosa invenção humana, mas ela também é uma forma de barganha
faustiana com nosso cérebro. As mesmas palavras que nos ajudam a conhecer os fenômenos,
confundem-nos fazendo acreditar que as categorias (conceitos) coincidem com as reais
fronteiras do mundo.
A visão clássica dos conceitos crê que as categorias têm fronteiras
definidas. Elementos da categoria “abelha” jamais se encontram na
categoria “pássaro”. Por essa visão, qualquer unidade é uma boa
representante de sua categoria. Qualquer abelha é uma representante, assim
por diante, porque todas as abelhas têm algo em comum. (...) Qualquer
variação de abelha para abelha deve ser considerada irrelevante, pelo fato
de que todas são abelhas. (...) Esses conceitos clássicos dominaram a
filosofia, biologia, psicologia desde a antiguidade até os anos 1970. Na vida
real, os elementos de uma categoria variam tremendamente, uns dos outros.
(...) Além de que alguns elementos de uma categoria são mais
representativos que outros: ninguém denominaria um pinguim como
representante dos pássaros. Nos anos 1970, as visões clássicas dos
conceitos finalmente colapsaram. (...) E das cinzas dos conceitos clássicos
uma nova visão surgiu. Ela diz que um conceito é representado no cérebro
como o melhor exemplo de sua categoria, agora conhecido como
„protótipo‟”.
Barrett, 2017: 88
Por exemplo, o pássaro prototípico tem penas, asas e pode voar. Mas, nem todos os entes da
categoria “pássaro” possuem essas características, como os pinguins e as emas, embora ainda
sejam pássaros. Variações em relação ao protótipo são perfeitamente aceitáveis, desde que
não sejam muitas: uma abelha ainda não é um pássaro. Por essa visão, o cérebro representa
um conceito por um protótipo, que pode ser o mais frequente exemplo de uma classe, porque
detém a maioria das características da categoria. (Barrett, 2017: 89). Contudo, o que se
entendeu de vez é que protótipos são médias, diferentemente dos conceitos, que são metas
utópicas.
O cacoete do essencialismo, o modo de pensar típico do senso comum ocidental, é um
fenômeno de difícil resolução, porque está baseado na universalidade das palavras
substantivas. Todo substantivo é o rótulo de um conceito, que se compõe de um conjunto
necessário e suficiente de qualidades impostas a entes existentes ou abstratos. A força do
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essencialismo reside na crença de que a palavra substantiva, como o signo de um conceito,
fornece existência aos entes.
No entanto, a generalidade característica da linguagem verbal não representa sua força, mas
sua fragilidade. Como no mundo, cada uma e todas as coisas são singulares, a construção
artificial de um conceito que abrange entes essencialmente iguais é uma quimera inventada
pela linguagem, para enfrentar sua incapacidade de nomear cada uma e todas as coisas
particulares existentes no mundo.
Por exemplo, o substantivo „cadeira‟ é um conceito, cujas qualidades necessárias e suficientes
são: elemento do mobiliário, composto de pernas, assento, encosto, cuja função é acomodar o
corpo humano. De acordo com a linguagem verbal, todas as coisas às quais se possam atribuir
essas qualidades acima mencionadas, devemos nominá-las de „cadeira‟, excluindo seus
acidentes, tais como sua estrutura de ferro, madeira ou plástico, sua cor branca, bege ou azul,
sua idade, estilo, estado etc. Ao abolir as características materiais de uma cadeira singular, o
conceito universaliza suas qualidades abstratas, fazendo crer ao usuário da linguagem verbal
que existe, de fato, uma „essência‟ de cadeira, aplicável a todas as coisas que parecem possuí-
las.
Infelizmente, o cacoete do essencialismo fica mais perigoso, quando a vida humana passa a
ser regida por sua ideologia. A começar pela disputa sobre quais características compõem a
essência de humanidade. Conforme o lugar e o tempo, o conceito (essência) de humano varia,
produzindo o que conhecemos por preconceito e xenofobia.
A ideia de um humano normal, por exemplo, pode transformar diversidade em crime. Os
sistemas legais estão repletos de pre-conceitos que privilegiam ilusões essenciais, como é o
caso da crença de que todos os humanos devem ser iguais, pois partilham do mesmo conceito
de „humanidade‟. Contudo, o objetivo da justiça não é igualar a todos, mas tratar os desiguais,
desigualmente: os cidadãos frágeis, por exemplo, devem obter mais proteção que os fortes.
Por quaisquer medidas e estatísticas que tentamos medir a humanidade, verificamos uma
imensa distribuição de características singulares como empatia, inteligência, habilidades
esportivas, agressividade e talentos especiais para piano ou xadrez. As pessoas não são iguais.
A variabilidade entre os seres humanos, tal como entre quaisquer outras espécies animais, é
um recurso fundamental da evolução das espécies. Em cada geração, a natureza cria
variedades em todos os indivíduos, com o objetivo de gerar espécimes mais adaptados ao
ambiente, que sempre esem constante transformação. Caso sobrevenha uma catástrofe que
elimine uma espécie, uma pandemia, os indivíduos diversificados sobrevivem ao se
adaptarem à nova realidade natural.
Entretanto, apesar de ser um recurso indispensável em favor do sucesso das espécies, a
diversidade promovida pela evolução causa problemas entre os humanos, especialmente no
que se refere às noções generalistas de nossos sistemas legais, construídos sob a crença na
igual capacidade de todos os humanos em tomar “decisões normais”, controlar impulsos e
compreender as consequências de seus atos. Mesmo admirável, o conceito de igualdade entre
os humanos simplesmente não procede. Por outro lado, prestemos atenção ao fato de que
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diversidade não implica hierarquia diferenças são fenômenos inclassificáveis, pois não se
tem como medir quando a diversidade é boa, má, bela, feia, certa ou errada. Até a lógica mais
básica sabe que só podemos comparar entes de uma mesma categoria esta faca é mais afiada
que aquela , mas não se pode comparar coisas diferentes: esta colher é mais útil que aquele
garfo.
Muitos argumentam que, embora a igualdade humana seja apenas um mito, essa ideia é
socialmente útil, por se tratar de uma poderosa ferramenta de estabilidade e ordenamento
social. No entanto, é preciso considerar que as pessoas não chegam ao mundo nas mesmas
condições, nem com as mesmas disposições. Suas histórias pessoais moldam seus
comportamentos e pensamentos. Tanto é assim que a legislação aceita parcialmente essa
diversidade. A lei difere sua aplicação dependendo da idade, do sexo, da saúde, das condições
de conhecimento dos fatos, circunstâncias aleatórias, atenuantes, agravantes etc.
Com diferentes genes e diversas experiências de vida, as pessoas podem ser tão diferentes
interna, quanto externamente. As neurociências recomendam entender as pessoas dentro de
um largo espectro de características de uma média prototípica, ao invés de um conceito
generalizante e invariável. (Eagleman, 2011: 193)
Pode-se dizer que a força do essencialismo reside na necessidade psicológica de satisfazer um
desejo de estabilidade e pacificação do mundo, diante da impermanência do real, que existe
em inconstante devir. O mundo real nunca se repete, as coisas sempre vêm a ser outras,
deixando de ser o que eram.
Nos moldes do pensamento tradicional, o mundo realmente existente carece de sentido, na
medida em que o significante (o mundo realmente existente) sempre está se transformando,
impedindo assim o estabelecimento de um significado definitivo, de um sentido mais
permanente, que pode existir em outro mundo capaz de ser sempre o mesmo o mundo
metafísico.
Esta impossibilidade de se repetir resume, aliás, a característica do
sensível e sublinha, ao mesmo tempo, a sua finitude. Jamais poder
“restituir” a coisa é justamente a marca do que o sensível, abandonado a si
mesmo, tem de constitucionalmente insatisfatório.
Rosset, 2008: 60
Assim, podemos entender o essencialismo dos antigos como uma reação psicológica à
fragilidade de seus conceitos, pois como pode a verdade se estabelecer em um mundo
movediço? Foi preciso criar um outro mundo além deste realmente existente, para estabilizar
a verdade. Um mundo metafísico onde se pode fixar as essências em eterna coincidência
consigo mesmas. Mas, quando I. Kant, no século XVIII, afirmou a impossibilidade de se
conhecer “as coisas em si mesmas”, condenando-nos à relatividade do conhecimento e,
portanto, da verdade, o filósofo prussiano implode as posições essencialistas. No século
seguinte, F. Nietzsche martela o último prego no caixão da metafísica, apontando a essência
como uma fantasia da linguagem, desfazendo o mundo suprassensível, onde se refugiavam os
conceitos universais sobre as coisas.
Marcos H. Camargo
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O descredenciamento do essencialismo no campo do pensamento contemporâneo não foi uma
simples quebra de paradigma, mas uma hecatombe filosófica. Com o fim do mundo
metafísico, a joia da coroa essencialista a verdade virou bijuteria barata à venda, na forma
de fake news, por pregadores de púlpitos e de palanques.
E hoje?
A constatação de que não essências, de que não hierarquia metafísica do ser que
mantenha a razão humana no topo da sabedoria, causou um desencanto certamente infundado.
Nós continuamos em frente, descobrindo novas dimensões, maravilhando-nos com o
universo, sob as lentes de nossos telescópios e microscópios sempre muito o que fazer e
conhecer. Quando Galileu afirmou que giramos em torno do sol e que a Terra não é o centro
do universo, antes de nos decepcionar, fomos presenteados com a maravilhosa realidade em
nossa volta. Ao sermos destronados por Darwin, de nossa fictícia posição privilegiada no topo
da criação, fomos brindados com nossa participação em um ambiente natural, porém
fantástico.
Encontramo-nos em um tempo em que devemos abolir os resíduos de essencialismo e toda
sua metafísica, que ainda povoa a cabeça do senso comum, para nos alegrar com a total
ausência de sentido do mundo, que nos permite a admirável liberdade de construir, por nós
mesmos, os sentidos de nossas existências, a partir da singularidade das diferenças, livrando-
nos, também, da tirania da identidade artificial dos conceitos universais.
Com o descredenciamento do essencialismo, com o abandono do mundo suprassensível e a
superação da metafísica, estamos redescobrindo o real, tal como os gregos trágicos o
concebiam: obscuro, confuso, enigmático, mas sensível o suficiente para fundamentarmos em
sua existência um novo pensamento hibridizado pelas linguagens não-verbais das dias
contemporâneas, que não nos entregam conceitos universais, mas imagens, sons e
movimentos do real, privilegiando cognições (conhecimentos) antes menosprezadas pela
vetusta racionalidade dos antigos. Curiosamente, foi preciso retornar à aurora do ocidente,
com os pensadores pré-socráticos e os sofistas, para redescobrirmos o real e abrirmos outra
etapa de desenvolvimento para a humanidade. Seja bem-vinda a destruição criadora do novo
mundo.
Referências
Barrenechea, M. A.; Casanova, M. A.; Dias, R. Feitosa, C. (organizadores), (2001). Assim
falou Nietzsche III. Rio de Janeiro: 7 Letras.
Barrett, L., (2017). How emotions are made: the secret life of the brain. Boston: Houghton
Mifflin Harcourt.
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Claxton, G., (2015). Intelligence in the flesh: why your mind needs your body much more than
it thinks. Londres: Yale University Press.
DIZIONARIO ETIMOLOGICO ONLINE. https://www.etimo.it/ Acessado em 20 de julho
de 2021.
Eagleman, D., (2014). Incognito: the secret lives of the brain. New York: Random House.
Kahn, C., (2009). A arte e o pensamento de Heráclito: uma edição dos fragmentos com
tradução e comentário. São Paulo: Paulus.
Nietzsche, F., (2020). O nascimento da tragédia. São Paulo: Editora Companhia de Bolso.
Norretranders, T., (1998). The user illusion: cutting consciousness down to size. New York:
Penguin Books.
Onfray, M., (2008). Contra-História da Filosofia 1: as sabedorias antigas. São Paulo:
Martins Fontes.
Rosset, C., (2008). O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olímpio.
Tomasello, M., (2014). A natural history of human thinking. London: Harvard University
Press.
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Marcos H. Camargo
Especialista em História do Pensamento Contemporâneo (PUC-PR, 1987). Especialista em
Economia e Sociologia (PUC-PR, 1988). Mestre em Comunicação e Linguagens (UTP,
2003). Doutor em Artes Visuais (IAR-UNICAMP, 2010). Pós-doutor pela Escola de
Comunicação (UFRJ, 2015). Professor de Graduação de Jornalismo, Relações Públicas e
Publicidade (UTP, 2004-2006). Professor de Graduação em Cinema e Audiovisual, Artes
Cênicas, Música e Dança (Campus de Curitiba II UNESPAR, desde 2006). Coordenador do
Curso de Graduação em Cinema e Audiovisual (2011-2013). Chefe da Divisão de Pesquisa e
Pós-Graduação do Campus de Curitiba II (UNESPAR, 2014-2018). Professor de Pós-
graduação stricto senso do Mestrado Profissional em Artes (Campus de Curitiba II,
UNESPAR, desde 2018). Pesquisador nas áreas de Filosofia, Estética e Semiótica. Autor do
livro: Cognição estética: o complexo de Dante. São Paulo: Annablume, 2013; e do livro:
Formas diabólicas: ensaios sobre cognição estética. Londrina: Syntagma, 2017