Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
202
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
FROM THE FORGETTING MACHINE TO THE CULTURE OF MEMORY
DE LA MÁQUINA DEL OLVIDO A LA CULTURA DE LA MEMORIA
Yussef Campos
Universidade Federal de Goiás, Brasil
yussefcampos@ufg.br
Wesley Ribeiro Alves
Universidade Federal de Goiás, Brasil
wesleyribal@gmail.com
Resumo
Diante século acossado por incontáveis tragédias como foi o XX, o testemunho assumiu um
papel central no mundo, e é natural que a memória tenha se tornado central para a sociedade
atual. Afinal, a sociedade que desfruta do mais avançado padrão de vida é também a
sociedade que mais produziu vítimas em sua inexorável marcha rumo ao progresso. A
ubiquidade da memória é tal que fala-se mesmo de um excesso de memória, ou uma busca
ininterrupta por algo que supra o vazio causado pelas promessas não cumpridas da e pela
modernidade. No Brasil parece imperar uma máquina do esquecimento, usando-se uma
expressão de Márcio Selligman-Silva (2003), que impede que as vítimas brasileiras tenham
seus testemunhos ouvidos por uma sociedade hostil às tentativas de reparação do passado. É
preciso refletir sobre as consequências desta cultura do esquecimento que permeia a sociedade
brasileira. Logo, o presente texto aborda a relação entre o silêncio imposto às vítimas das
tragédias passadas e as tragédias que seguem sendo promovidas pelo Estado ou com a
conivência dele. Compreende-se que a desarticulação deste maquinário do esquecimento é
uma condição para a consolidação do Brasil como um Estado democrático, ao mesmo tempo
que se entende o testemunho como chave para tal processo, ainda que reconheça-se o
esquecimento como chave indispensável para a sedimentação da memória coletiva. O não
reconhecimento desses patrimônios é indício de um grande entrave à democracia.
Palavras-chave: Máquina do esquecimento, memória coletiva, Democracia, Patrimônio
Cultural, Testemunhos.
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
203
Abstract
In a century plagued by countless tragedies such as the 20th, testimony assumed a central role
in the world, and it is natural that memory has become central to today's society. After all, the
society that enjoys the most advanced standard of living is also the society that produced the
most victims in its relentless march towards progress. The ubiquity of memory is such that
there is even talk of an excess of memory, or an uninterrupted search for something that fills
the void caused by the unfulfilled promises of and by modernity. In Brazil, there seems to be
a forgetting machine, using an expression by Márcio Selligman-Silva (2003), which prevents
Brazilian victims from having their testimonies heard by a society hostile to attempts to repair
the past. It is necessary to reflect on the consequences of this culture of oblivion that
permeates Brazilian society. Therefore, this text addresses the relationship between the silence
imposed on victims of past tragedies and the tragedies that continue to be promoted by the
State or with its connivance. It is understood that the dismantling of this machinery of
oblivion is a condition for the consolidation of Brazil as a democratic State, while witness is
understood as the key to such a process, even though forgetting is recognized as an
indispensable key to sedimentation of collective memory. The non-recognition of these assets
is an indication of a major obstacle to democracy.
Keywords: Forgetting machine, collective memory, Democracy, Cultural Heritage,
Testimonies.
Resumen
En un siglo plagado de innumerables tragedias como la del XX, el testimonio asumió un papel
central en el mundo, y es natural que la memoria se haya convertido en el centro de la
sociedad actual. Después de todo, la sociedad que disfruta del nivel de vida más avanzado es
también la sociedad que produjo más víctimas en su incesante marcha hacia el progreso. La
ubicuidad de la memoria es tal que incluso se habla de un exceso de memoria, o de una
búsqueda ininterrumpida de algo que llene el vacío que provocan las promesas incumplidas
de y por la modernidad. En Brasil, parece haber una máquina del olvido, con una expresión de
Márcio Selligman-Silva (2003), que impide que las víctimas brasileñas hagan oír sus
testimonios en una sociedad hostil a los intentos de reparar el pasado. Es necesario reflexionar
sobre las consecuencias de esta cultura del olvido que impregna la sociedad brasileña. Por
tanto, este texto aborda la relación entre el silencio impuesto a las víctimas de tragedias
pasadas y las tragedias que siguen siendo promovidas por el Estado o con su connivencia. Se
entiende que el desmantelamiento de esta maquinaria del olvido es condición para la
consolidación de Brasil como Estado democrático, mientras que el testimonio se entiende
como la clave de tal proceso, aunque se reconoce el olvido como clave indispensable para la
sedimentación de la memoria colectiva. El no reconocimiento de estos activos es un indicio
de un gran obstáculo para la democracia.
Palabras clave: Máquina del olvido, memoria colectiva, democracia, patrimonio cultural,
testimonios.
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
204
O Brasil no século da catástrofe: a ubiquidade da máquina do esquecimento
O século XX foi o século da catástrofe. Duas Guerras Mundiais, ditaduras de segurança
nacional, regimes de exceção, tentativas de aniquilação de minorias e de opositores, Guerra
Fria. Essa lista é meramente exemplificativa. Difícil encontrar uma única região do globo que
não tenha sido palco de atrocidades difíceis de se esquecer, mas igualmente difíceis de se
traduzir em palavras. Catástrofes produzem traumas e podem ser contadas pelo número de
mortos, por vídeos e fotos da destruição e da violência, nada, porém se equipara ao papel do
testemunho nesse processo.
A mais paradigmática dessas catástrofes foi a Shoah. Não é o objetivo aqui discutir os
motivos que levaram o projeto de extermínio de judeus por parte dos nazistas, à posição de
destaque dentre as múltiplas catástrofes ocorridas no século XX, muito menos adentrar na
fulcral problemática que a questão encerra. Ocorre que a Shoah oferece um modelo de
tratamento do testemunho das vítimas e sobreviventes que é, igualmente, paradigmático no
século XX.
Márcio Seligmann-Silva aponta que predominou na América Latina uma leitura que o
testemunho a partir de sua modalidade de denúncia e reportagem, abordagem muito distinta
da que se desenvolveu ao redor da Shoah em que se observa um “real” que não se deixa
traduzir. “Ao pensarmos Auschwitz, fica claro que mais do que nunca a questão não está na
existência ou não da „realidade‟, mas na nossa capacidade de percebê-la e de simbolizá-la”
(Seligmann-Silva, 2003: 49). Isto é, enquanto na América Latina predomina um testemunho
orientado para a denúncia dos agressores, ao olharmos para a Shoah, enxergamos um
testemunho que busca, em primeiro lugar, simbolizar, representar o trauma.
Lidar com o testemunho não é simples. Em primeiro lugar, os sobreviventes e as gerações
futuras diuturnamente, precisam rememorar a tragédia e enlutar os mortos. Seligmann-Silva
(2003) compreende a ambiguidade dessa tarefa, que de um lado envolve lidar com a ferida
aberta pelo trauma, ao mesmo tempo que visa a um consolo nunca totalmente alcançável.
Aquele que testemunha sobreviveu de modo incompreensível à
morte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua,
o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua. Nele a
morte o indizível por excelência, que a toda hora tentamos dizer
recebe novamente o cetro e o império sobre a linguagem. O simbólico
e o real são recriados na sua relação de mútua fertilização e
exclusão.
Seligmann-Silva, 2003: 52
Alessandro Portelli, ao analisar as narrativas sobre um massacre cometido pelos nazistas na
Itália de Mussolini, aponta que “em Civitella, como em outros lugares, o indizível é dito. O
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
205
esforço para contar o incontável resulta em narrativas interpretáveis, constructos culturais de
palavras e ideias” (Portelli, 2006: 107). Contudo, o próprio autor mostra que também para o
pesquisador lidar com o testemunho não é simples, pois é exigido do mesmo um profundo
respeito pela dor daquele que narra, ao mesmo tempo que se exige uma postura crítica sobre o
que foi narrado.
Outrossim, a ubiquidade da Shoah é tamanha que chega a eclipsar a perseguição empreendida
pelo fascismo alemão a outros grupos (como os deficientes físicos, homossexuais,
Testemunhas de Jeová, comunistas) e mesmo a memória alemã dos bombardeios aéreos
empreendidos pelos Aliados, durante a Segunda Guerra Mundial (Huyssen, 2014).
Uma série de fatores são levantados para explicar essa realidade. Para não estender muito,
limitar-seà constatação de Selligman-Silva (2003), segundo a qual a religião judaica é uma
religião da memória. As festas judaicas são, essencialmente, festas de rememoração. Para o
judeu, lembrar é, antes de mais nada, um ato sagrado, um mandamento de Deus:
Moisés disse ao povo: Lembrai-vos deste dia, em que saístes do Egito,
da casa da escravidão; pois com mão forte Iahweh vos tirou de lá; e,
por isso, não comereis pão fermentado. Hoje é o mês de Abib, e estais
saindo. [...] E será como sinal na tua mão, um memorial entre os teus
olhos, para que a lei de Iahweh esteja na tua boca; pois Iaweh te tirou
do Egito com mão forte. Observarás esta lei no tempo determinado,
de ano em ano.
Bíblia, Êxodo: 13, 3-4. 9-10
Apesar de seu caráter denunciativo, é inegável que existe uma cultura de memória e uma farta
produção testemunhal na América Latina (Selligman-Silva 2013). Todavia, isso não se aplica
à realidade brasileira. Enquanto a cultura judaica é permeada por uma obrigação da memória,
no Brasil, parece haver uma obrigação do esquecimento. E aqui, o se refere ao
esquecimento correlato da memória, aquele que abre caminho para a memória, na visão de
Paul Ricœur, muito menos do esquecimento criativo nietzschiano. Parece, olhando a partir da
tipologia ricœuriana, operar no Brasil uma memória manipulada e um esquecimento
comandado.
Assevera Ricœur (2007: 455):
O recurso à narrativa torna-se assim a armadilha, quando potências
superiores passam a direcionar a composição da intriga e impõem
uma narrativa canônica por meio de intimidação ou de sedução, de
medo ou de lisonja. Está em ação aqui uma forma ardilosa de
esquecimento, resultante do desapossamento dos atores sociais de seu
poder originário de narrarem a si mesmos.
Aponta Selligman-Silva (2013) que a existência de uma máquina do esquecimento no Brasil
impede a sociedade de lidar com os traumas decorrentes da última ditadura civil-militar. O
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
206
autor chega mesmo a escrever sobre a existência de um bloqueio testemunhal que a um
tempo impede a própria justiça (pensando nas implicações jurídicas advindas com a questão)
e torna a produção literária testemunhal brasileira diminuta, em comparação à da América
Latina. Nem mesmo o fim da ditadura civil-militar conseguiu desmantelar a máquina do
esquecimento, que segue operando com a cumplicidade dos meios de comunicação.
Selligman-Silva (2013) escreve sobre o crime perfeito da ditadura, no sentido dado por Jean-
François Lyotard, que conseguiu impor o silêncio das testemunhas, a surdez do aparato
judicial e uma nova violência contra as vítimas, que transforma o emissor, o que carrega a
memória dos traumas em portador de alguma patologia da memória ou alguém simplesmente
guiado pelo desejo de vingança.
Máquina do esquecimento esta que tem em interpretações forçadas da Anistia uma de suas
principais formas de agir. Não é para menos que Ricœur (2007: 460) a anistia como um
dos abusos do esquecimento, na sua tipologia dos usos e abusos do esquecimento:
[...] ela [a anistia] põe um fim a graves desordens políticas que afetam
a paz civil guerras civis, episódios revolucionários, mudanças
violentas de regimes políticos violência que a anistia,
presumidamente, interrompe. [...] Mas a anistia, enquanto
esquecimento institucional, toca nas próprias raízes do político e,
através deste, na relação mais profunda e mais dissimulada com um
passado declarado proibido.
A anistia, ou o esquecimento comandado é uma práxis comum na história brasileira, em
especial, quando se trata de atenuar os crimes cometidos pelas elites. Ainda no período
colonial e imperial são variados os casos em que membros da elite foram anistiados, enquanto
os membros das camadas populares arcaram com o poderio repressor do Estado
1
.
Contudo, na República essa prática se torna recorrente no Estado brasileiro. República, aliás,
que se iniciou com um esquecimento comandado, quando Rui Barbosa determinou a queima
de documentos relativos à escravidão. Victor Hugo Adler Pereira (2013) aponta para as
graves consequências para a historiografia e a memória social brasileira, contudo não se pode
ignorar que muitos foram os que se beneficiaram deste ato. Assim é preciso reconhecer que a
máquina do esquecimento preconizada por Selligman-Silva não foi montada na última
ditadura civil-militar. Parece muito mais sensato assumir que tal maquinaria está na gênese do
Estado brasileiro, ainda que a ditadura tenha elevado sua capacidade de atuação à enésima
potência.
O esquecimento comandado por Rui Barbosa abriu caminho para que as mesmas elites que
postergaram ao máximo o fim da escravidão no Brasil conseguissem cantar sem maiores
constrangimentos o Hino da República: “Nós não cremos que escravos outrora tenha havido
1
Por exemplo, é notório que na Conjuração Mineira (1789), a pena capital apenas recaiu sobre Tiradentes, um
dos poucos membros que não pertencia à elite, no movimento. Ao final da Farroupilha, após a morte de milhares
de pessoas nos dez anos de conflitos, uma anistia imperial abriu caminho para que mesmo Bento Gonçalves
assumisse posição de destaque no Exército. Em geral, as “anistias” brasileiras sempre se mostraram generosas
quando se trata de perdoar os membros das elites nacionais.
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
207
em tão nobre País... Hoje o rubro lampejo da aurora acha irmãos, não tiranos hostis. Somos
todos iguais ao futuro”. Mesma elite que, ao assumir os mais altos cargos do novo regime não
adotaram nenhuma medida efetiva de inserção dos negros na sociedade brasileira.
Diante deste histórico, a promulgação da Anistia de 1979 não surpreende. Joana D‟Arc
Fernandes Ferraz (2013) destaca que o projeto transformado em lei foi o proposto pelos
militares. De fato, trata-se de uma anistia ampla, total e irrestrita, mas sobretudo para os
militares. Ainda que prometendo alcançar a ambos os lados, a Anistia de Figueiredo excluiu
crimes como terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, o que deixava de fora a maior
parte dos militantes da luta armada contra a ditadura. Por outro lado, crimes contra os direitos
humanos cometidos pelos militares foram perdoados. E, como apontado, ainda no presente,
interpretações forçadas da Lei da Anistia seguem inviabilizando a justiça às vítimas e seus
parentes.
A máquina do esquecimento brasileira tem escusado o Estado de fazer justiça às vítimas, seja
a justiça social para com as minorias, seja a justiça indenizatórias das vítimas de violações dos
direitos humanos perpetrada pelo Estado. A máquina do esquecimento, porém, segue atuando
incansavelmente na atualidade e, enquanto ela operar mais vítimas seguirão sendo produzidas
no país.
O papel do testemunho na superação da Máquina do Esquecimento
Antes de se adentrar no papel reservado pelo testemunho para a criação de uma cultura da
memória que rompa as amarras da máquina do esquecimento em operação no Brasil, é
necessário que se faça uma reflexão acerca das armadilhas da memória. Ricœur (2003)
ilustrou esta realidade, ao apontar que o recurso da narrativa pode se tornar uma armadilha,
quando os que detêm o poder se valem dela para definir os cânones sob os quais a sociedade
deve conduzir sua memória coletiva.
É nesse sentido que Andreas Huyssen propõe uma mudança de perspectiva, em que a ideia de
memória coletiva cede lugar para a noção de memórias conflitantes.
A ideia largamente popular de memória coletiva, baseada que é nos
escritos sociológicos e históricos de Maurice Halbwachs e Pierre
Nora, bloqueia o discernimento dessas batalhas entre passados, que
tanto são travadas dentro das nações quanto em contextos
transnacionais. Ela impede a compreensão do exemplo normal de
qualquer política da memória em que passados diferentes são
colocados uns contra os outros.
Huyssen, 2014: 183
Huyssen entende que a querela teórica acerca do conflito entre memória e história esvanece,
de um lado, as referidas disputas entre passados e, por outro, o próprio uso do passado pelo
presente, afinal, para o autor, “A memória é sempre o passado presente, o passado
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
208
comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e
evasões” (Huyssen, 2014: 182).
Para resolver esta aporia é que emerge a ideia de memórias conflitantes em Huyssen. Através
dessa noção, o autor consegue enxergar „a competição entre campos de memória separados
pelo espaço e o tempo que tentam deslocar ou suplantar uns aos outros a partir de uma
situação de privilégio: Holocausto e Nabka, o Holocausto e a escravidão, o Holocausto e o
colonialismo” (Huyssen, 2014: 183).
Chega-se a uma realidade inexorável: a vitimação, o sofrimento e a opressão são muito
difundidos na modernidade. Esta dura realidade é muito mais complexa que um discurso
mnemônico que insiste no binômio vencedores e vencidos pode abarcar. O próprio Huyssen
entende que, tomando a Shoah como paradigma, os países latino-americanos conduziram sua
difícil tarefa de assegurar a legitimidade e o futuro da nova sociedade democrática
organizada. Para isso, lembrar os traumas do passado era um elemento central.
Walter Benjamin, como lembra Huyssen, aponta que os mortos têm direito sobre nós, uma
vez que somos as futuras gerações. Por sua vez, Max Horkheimer entende que os mortos
estão mortos e não podem ser despertados, contudo, devem ser lembrados:
Afinal, essa é uma marca da civilização humana, desde muito antes
da articulação explícita dos direitos naturais, dos direitos humanos,
dos direitos civis e de quaisquer outros, e mais ainda depois do século
que acabamos de deixar para trás, o mais mortífero da história da
humanidade.
Huyssen, 2014: 199
Contudo, isso não significa que os discursos de memória e dos direitos, para o autor, se
combinem de forma fácil, dado que falta ao primeiro, sólida dimensão normativa jurídica. A
memória, nessa perspectiva, frágil e difícil de ratificar, não seria a mais indicada para servir
de base para a elaboração de leis. Igualmente, uma cultura da memória e do testemunho, por
si, não parece ser suficiente para evitar novas tragédias. Novamente, Huyssen atesta que tal
teleologia da memória não é contraproducente, como infrutífera. Dificilmente, outro
período da história se interessou, pesquisou e consumiu mais memória que o atual. Ainda
assim, [...] a crença em que a lembrança do genocídio como crime contra a
humanidade poderia impedir novos genocídios ruiu por terra no
momento em que o mundo deparou com novas formas de genocídio,
massacres estatais e limpeza étnica, na Bósnia, em Ruanda e em
Darfur.
Huyssen, 2014: 203
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
209
Portanto, percebe-se que uma cultura da memória e o próprio testemunho podem não ser
eficazes para se garantir, no presente, a plena aplicação dos direitos humanos, culturais,
sociais. Da mesma forma, tornar o passado presente não parece garantir a prevenção de
catástrofes, geradoras de novas memórias traumáticas.
Um discurso público onipresente e até excessivo da memória, somado
a sua comercialização em massa, pode gerar outra forma de
esquecimento, um olvido por exaustão que é diferente da mémorie
manipulé de Ricœur, como um ne pas vouloir savoir [não querer
saber]. A ameaça do esgotamento afeta hoje tanto a memória do
Holocausto quanto as memórias da guerra aérea. É nesse ponto que o
foco intenso nas lembranças do passado pode bloquear nossa
imaginação do futuro e criar uma nova cegueira no presente. Nesse
estágio, talvez convenha limitarmos o futuro da memória, a fim de
nosso lembrarmos do futuro.
Huyssen, 2014: 174
Sem dúvidas, esse excesso de memória que gera a seu próprio modo esquecimento é uma
realidade em vários contextos, contudo não é o caso do brasileiro. Por aqui, o esquecimento
ainda é gerado por um maquinário operado pelo Estado brasileiro e por seus controladores. É
a falta, não o excesso de memória que produz esquecimentos comandados no país. Até
mesmo o debate sobre a ética e o direito ao esquecimento proposto, por vias distintas, por
Ricœur e Huyssen parece deslocado, num país que segue produzindo vítimas mudas, uma
justiça surda e uma sociedade cega diante das atrocidades passadas e presentes no país.
A primeira consequência do pouco espaço reservado para o testemunho no Brasil é
imobilização do testemunho jurídico. Como assevera Selligman-Silva (2013), a política de
aniquilamento da memória, no Brasil, faz parte de uma política de aniquilamento dos feitos.
A memória, na concepção de Selligman-Silva é apenas uma face de uma tríade composta por
memória-verdade-justiça. No Brasil, ainda que tenhamos notado avanços como a Comissão
da Verdade
2
, falta-nos verdade e justiça, justamente porque o primeiro desencadeador desse
processo, a memória, é negligenciada. É a falta de uma cultura da memória aliada à
desqualificação do testemunho que permitem que se conviva com interpretações forçadas da
Lei da Anistia, aprovada em 1979
3
.
2
Colegiado instituído durante o governo Dilma Rousseff, que atuou entre 2011 e 2014, para investigar violações
aos direitos humanos por parte do Estado brasileiro no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de
1988. No dia 10 de dezembro de 2014, a CNV entregou o relatório final à presidenta Dilma Rousseff. Foram
identificadas 434 mortes e desaparecimento de pessoas sob responsabilidade do Estado e 377 agentes públicos
foram apontados como responsáveis por esses crimes.
3
Um exemplo didático foi o da tentativa de atentado ao Riocentro, em 1981. Dois militares tentaram explodir
duas bombas num evento alusivo ao Dia do Trabalhador daquele ano e jogar a culpa nos opositores da Ditadura.
Contudo, o plano acabou fracassando. O sargento Guilherme Pereira do Rosário acabou morto, enquanto o
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
210
Engana-se, porém, quem pensa que a necessidade de uma cultura do testemunho, no Brasil,
diz respeito a fazer justiça ou promover uma conciliação da sociedade brasileira com o seu
passado. O Estado brasileiro do século XXI segue sendo eficiente em sua tarefa de reprimir os
seus indesejáveis, de manipular fatos, de impor o esquecimento à toda a sociedade, contando
com a conivência da grande mídia e dos setores da elite particularmente beneficiados por essa
política.
Operações policiais em comunidades das periferias das grandes cidades brasileiras,
frequentemente, terminam em chacinas. No ímpeto de se livrar de acusações de flagrantes
violações dos direitos humanos e de assassinatos, locais de crime são adulterados, vítimas são
silenciadas, provas desaparecidas. Perícias são impossibilitadas, quando o manipuladas e as
investigações de excessos cometidos pelas forças policiais são encobridas por questionáveis
segredos de Estado, quando não arquivadas.
Em nome do progresso e do desenvolvimento, grandes companhias são anistiadas, mesmo
tendo cometido gravíssimos crimes ambientais que geram consequências tenebrosas para
comunidades e ecossistemas inteiros. Novamente, a máquina do esquecimento brasileira entra
em ação, adulterando provas, com a cumplicidade da morosidade da justiça e o galardoado
silêncio da mídia.
A pandemia da Covid-19 fez milhares de vítimas ao redor do globo. No Brasil, contudo, ela
evidenciou como a violenta desigualdade social é mortal. Covas comuns foram abertas,
muitos mortos sepultados sem a devida confirmação da doença, dada a baixa testagem da
população. Chegará um momento que também os sobreviventes e familiares desta tragédia
deverão falar. Haverá uma sociedade que os escute?
Estes três exemplos apontam que o trabalho com fontes que vão além dos relatórios e
investigações oficiais, no Brasil, não é apenas desejável, mas imperativo. Em muitos casos,
como os citados, o testemunho das vítimas e sobreviventes pode ser o único contraponto à
verdade dos fatos imposta pelo Estado e seus cúmplices, seja pela manipulação, seja pela
negligência na apuração.
Como Selligman-Silva (2013) asseverou, o Brasil segue negando às vítimas das catástrofes
cometidas pelo ou com anuência do Estado, a possibilidade de serem acusadoras. O Estado e
a sociedade brasileira seguem negando às vítimas a única possibilidade de elas deixarem de
ser vítimas. Se é verdade que a memória e o testemunho por si não garantem que as tragédias
citadas ao longo desse texto não se repitam, como sugeriu Huyssen, certamente, a máquina do
esquecimento tem sido fundamental para que, mesmo sob a égide Constituição Cidadã, as
tragédias se banalizem no país. A justiça, em todas as acepções do termo, segue sendo
impedida no Brasil.
É evidente que o trabalho com o testemunho requer, por parte dos pesquisadores cuidados
metodológicos e éticos fundamentais, como preconizado por Portelli, Huyssen e por qualquer
capitão Wilson Machado ficou ferido. O caso acabou arquivado pelo Superior Tribunal Militar, com base na Lei
da Anistia, cuja validade se estendia de 1961 a 1979, portanto, dois anos antes do referido atentado.
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
211
teórico que se debruce sobre a questão da memória. Toda narrativa produzida, inclusive
aquela das vítimas das tragédias, traz consigo ideologias, visões de mundo que devem ser
problematizadas. Mas, como efetivar essa problematização num país que segue apegado ao
maquinário do esquecimento.
O testemunho parece ser capaz de unir essas duas realidades. Numa sociedade enebriada pelo
progresso e pela técnica, o testemunho ecoa como um sinal de aviso da tempestade que sopra
do futuro. O testemunho lembra o terrível preço que se pagou para que se chegasse ao atual
presente. O testemunho lembra que a cada dia o preço do atual modelo de sociedade se torna
mais impagável e ameaça qualquer esperança de futuro. Finalmente, o testemunho pode
desmantelar a máquina do esquecimento que opera no seio da sociedade brasileira, ao mesmo
tempo que pode contribuir para desarticular a máquina da técnica que segue produzindo
vítimas, traumas e tragédias.
Considerações finais
Walter Benjamin aponta a necessidade de se fazer uma história a contrapelo. Tal realidade é
particularmente visível no Brasil, onde uma poderosa e bem articulada máquina do
esquecimento tem impedido, sistematicamente, a consolidação de uma cultura da memória
que permita dar voz àqueles que tombaram vítimas do progresso e do desenvolvimento do
Estado.
É um lugar-comum se referir à desigualdade e à violência impetrados pelo Estado brasileiro.
O desafio de se fazer a sociedade brasileira ouvir suas próprias vítimas, do passado e do
presente não é simples. É preciso dar voz aos negros, às mulheres, aos pobres, aos indígenas,
à população LGBTQIA+. É preciso construir uma cultura da memória que ao mesmo tempo
que não gere esquecimento pelo excesso, auxilie na produção de ao menos um mínimo
consenso sobre a necessidade de consolidar o Brasil como um Estado democrático e de
direito.
A responsabilidade sobre a azeitada máquina do esquecimento que permeia a sociedade
brasileira é coletiva. Pouco se produz sobre isso na academia. A mídia também colabora ao
tratar as vítimas das tragédias brasileiras como reles ressentidos, ao mesmo tempo que exalta
vítimas de catástrofes alçadas à universalidade. O sistema educacional atual ainda não
consagra espaço a essas questões, o testemunho passa longe de nossas sociedades. Em alguma
dimensão, a responsabilidade é de toda a sociedade e de cada indivíduo em si. Assim, essa
máquina é a que tem emperrado os processos de patrimonialização dos lugares de memória
sensíveis, suportes das atrocidades cometidas pelo Estado e/ou com sua conveniência. Pode-
se se contar nos dedos quais são. Mas deixamos esse assunto para uma próxima oportunidade.
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
212
Referências
Bíblia de Jerusalém. Trad. École biblique de Jerusalem. São Paulo: Paulus, 2002.
Ferraz, J., (2013).Anistia no Brasil: a arte de recordar e esquecer. In: Santos, M. S. et. al.
(org.) Cultura, Memória e Poder: diálogos interdisciplinares. Rio de Janeiro: EDUERJ, pp.
33-44.
Huyssen, A., (2014) Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da
memória. Rio de Janeiro: Contraponto.
Pereira, V. (2013). A incômoda e persistente memória da escravidão. In: Santos, M. S. et. al.
(org.) Cultura, Memória e Poder: diálogos interdisciplinares. Rio de Janeiro: EDUERJ, pp.
185-200.
Portelli, A., (2006). O massacre de Civitella Val di Chiana. In: Ferreira, M.M. e Amando, J.
(org.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, pp. 103-130.
Ricouer, P., (2007). A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp.
Seligmann-Silva, M. (org.), )2003). História, Memória, Literatura: O Testemunho na Era das
Catástrofes. Campinas: Ed. da Unicamp.
_______________________, (2013). Testimonio como narrativa después de las catástrofes.
In: Kaufman, A. et. al. (org.) Walter Benjamin en la ESMA. Buenos Aires: Prometeo, 2013. p.
293-304.
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
213
Yussef Campos
Professor Adjunto da Faculdade de História e permanente dos Programa de Pós-Graduação em
História e do Programa de Pós-graduação ProfHistória - Universidade Federal de Goiás. Doutor
em História (Universidade Federal de Juiz de Fora); Mestre em Memória Social e Patrimônio
Cultural pela Universidade Federal de Pelotas-RS. Graduado em Direito pela Universidade
Federal de Juiz de Fora; Especialista em Gestão do Patrimônio Cultural (Granbery e PERMEAR,
Juiz de Fora-MG). Pesquisa o patrimônio cultural a partir da relação entre História, Memória e
Identidade, além de suas nuances jurídicas. Durante o mestrado participou, como bolsista
CAPES, do projeto Perspectivas Teóricas sobre el Patrimonio Material e Inmaterial en
Sudamerica (Brasil y Argentina), do Programa de Cooperación Internacional Asociado para el
Fortalecimiento de la Posgrado, Brasil / Argentina (CAFP/BA), que resultou da cooperação
acadêmica entre os programas de pós-graduação em Economia Política de la Cultura, Estudios
sobre Producciones Culturales y Patrimonio de la Facultad de Filosofia y Letras (ICA/FFyL), de la
Universidad de Buenos Aires (UBA), e em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade
Federal de Pelotas/Brasil. É membro do ICOMOS-Brasil (International Council of Monuments
and Sites). Colaborou, como co-organizador e autor, nas edições 35 e 36 da Revista do
Patrimônio, em comemoração aos 80 anos do IPHAN. É membro do ICOMOS e do IBDCult e líder
do grupo de pesquisa CNPq LUPA - Lugares e Patrimônios.