
Yussef Campos e Wesley Ribeiro Alvesspe
DA MÁQUINA DO ESQUECIMENTO À CULTURA DA MEMÓRIA
Engana-se, porém, quem pensa que a necessidade de uma cultura do testemunho, no Brasil,
diz respeito a fazer justiça ou promover uma conciliação da sociedade brasileira com o seu
passado. O Estado brasileiro do século XXI segue sendo eficiente em sua tarefa de reprimir os
seus indesejáveis, de manipular fatos, de impor o esquecimento à toda a sociedade, contando
com a conivência da grande mídia e dos setores da elite particularmente beneficiados por essa
política.
Operações policiais em comunidades das periferias das grandes cidades brasileiras,
frequentemente, terminam em chacinas. No ímpeto de se livrar de acusações de flagrantes
violações dos direitos humanos e de assassinatos, locais de crime são adulterados, vítimas são
silenciadas, provas desaparecidas. Perícias são impossibilitadas, quando não manipuladas e as
investigações de excessos cometidos pelas forças policiais são encobridas por questionáveis
segredos de Estado, quando não arquivadas.
Em nome do progresso e do desenvolvimento, grandes companhias são anistiadas, mesmo
tendo cometido gravíssimos crimes ambientais que geram consequências tenebrosas para
comunidades e ecossistemas inteiros. Novamente, a máquina do esquecimento brasileira entra
em ação, adulterando provas, com a cumplicidade da morosidade da justiça e o galardoado
silêncio da mídia.
A pandemia da Covid-19 fez milhares de vítimas ao redor do globo. No Brasil, contudo, ela
evidenciou como a violenta desigualdade social é mortal. Covas comuns foram abertas,
muitos mortos sepultados sem a devida confirmação da doença, dada a baixa testagem da
população. Chegará um momento que também os sobreviventes e familiares desta tragédia
deverão falar. Haverá uma sociedade que os escute?
Estes três exemplos apontam que o trabalho com fontes que vão além dos relatórios e
investigações oficiais, no Brasil, não é apenas desejável, mas imperativo. Em muitos casos,
como os citados, o testemunho das vítimas e sobreviventes pode ser o único contraponto à
verdade dos fatos imposta pelo Estado e seus cúmplices, seja pela manipulação, seja pela
negligência na apuração.
Como Selligman-Silva (2013) asseverou, o Brasil segue negando às vítimas das catástrofes
cometidas pelo ou com anuência do Estado, a possibilidade de serem acusadoras. O Estado e
a sociedade brasileira seguem negando às vítimas a única possibilidade de elas deixarem de
ser vítimas. Se é verdade que a memória e o testemunho por si não garantem que as tragédias
citadas ao longo desse texto não se repitam, como sugeriu Huyssen, certamente, a máquina do
esquecimento tem sido fundamental para que, mesmo sob a égide Constituição Cidadã, as
tragédias se banalizem no país. A justiça, em todas as acepções do termo, segue sendo
impedida no Brasil.
É evidente que o trabalho com o testemunho requer, por parte dos pesquisadores cuidados
metodológicos e éticos fundamentais, como preconizado por Portelli, Huyssen e por qualquer
capitão Wilson Machado ficou ferido. O caso acabou arquivado pelo Superior Tribunal Militar, com base na Lei
da Anistia, cuja validade se estendia de 1961 a 1979, portanto, dois anos antes do referido atentado.